"Mermão, tem que ligar para a Itália para saber se isso aconteceu com os velhos de lá", diz a voz de um homem numa mensagem "Os velhos daqui, eles estão
“Mermão, tem que ligar para a Itália para saber se isso aconteceu com os velhos de lá”, diz a voz de um homem numa mensagem
“Os velhos daqui, eles estão todos indo para a rua. Não sei se é um grande bingo, uma refilmagem de ‘Cocoon’. A rua tá ‘The Walking Velho’. Fiquei com medo de um velho me morder e eu virar velho.”
Não se sabe quem é o responsável por essa mensagem, mas o sotaque carioca sugere que tenha saído do Rio de Janeiro. Ela está entre as dezenas de áudios anônimos que circulam pelos celulares em mensagens de WhatsApp. Você certamente já recebeu vários desses.
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Às vezes parecem verdadeiros e, em outras, são claramente falsos – mas são sempre engraçados. Contam, a seu modo, as histórias mais heterodoxas. É uma regra quase sem exceção – chega uma nova tecnologia ou rede social, criada para um certo uso, e ela logo vira algo muito diferente ao cair nas mãos do povo.
O WhatsApp, antes só um aplicativo de mensagens, virou uma plataforma de conteúdo. E, fora as notícias falsas, é a nova mídia do humor.
Em tempos de isolamento social, é talvez o mais perto que se possa chegar da sensação de ouvir uma piada contada na mesa do bar. Como os áudios muitas vezes refletem o que está havendo no mundo real, é normal que agora essas vozes resolvam fazer graça da pandemia do novo coronavírus.
Mesmo com humor, os áudios vão registrando os dramas da quarentena, como o tédio do isolamento. Um outro famoso traz um homem imitando voz de uma mulher. Diz que não tem mais uma louça para lavar. Já sujou roupa de propósito para ter o que lavar e passar. O rejunte do banheiro, afirma, já está mais branco do que os dentes da Xuxa.
O homem do WhatsApp é um resquício dos sonhos que embalavam o começo da internet – o conteúdo muitas vezes anônimo, distribuído livremente, produzido por uma inteligência coletiva.
É algo que se enfraquece com a ascensão dos grandes negócios online e a profissionalização de tudo que é produzido nela. Mas que vive nesses áudios e na cultura de memes.
É natural que essas culturas online, no entanto, também tenham sua linguagem adotada por profissionais. É o caso do humorista e roteirista Paulo Vieira, da Globo, que apresentava o “Fora de Hora”. Desde o início da quarentena, Vieira começou a publicar em seu perfil no Instagram uma série de posts que batizou de “Diário do Coronga”.
Feitos só com áudios de WhatsApp, trazem uma dona de casa – mesma personagem que o ator estava fazendo no quadro “Isso é Muito Minha Vida”, do programa “Se Joga” – mandando mensagens para seus contatos e falando com as amigas.
“Niede, será que esse negócio do coronga não é o fim dos tempos, não?”, pergunta ela num deles. “Porque na Bíblia fala que Deus não vai mais acabar o mundo com água, vai acabar com fogo. Então acho que Deus está sendo muito é do esperto, esperando nós todos nos lambuzarmos no álcool para ele só vir e jogar um fósforo.”
“É inspirado na minha mãe, estava com ela na primeira semana da quarentena, e era muito fácil saber o que ela estava pensando. Tem uma doença devastando o mundo e a preocupação é ‘se eu não posso sair, como vou pegar minha tupperware com a Rita?’”, ri Vieira.
“Acho que agora essa é a maneira mais fácil de produzir humor. Para filmar, você precisaria de cenário, câmera, edição. A parte ruim é que o áudio viraliza e isso não se reverte em público para você. Funciona mais para fortalecer o personagem”, afirma o humorista.
Claro, há também os áudios reais, mesmo quando parecem bons demais para ser verdade – e anônimos se assustam ao ver suas mensagens privadas de repente circulando de ouvido em ouvido.
Foi o caso no ano passado de Ivete Dias, uma viúva de 60 anos que mandou um áudio para uma amiga reclamando do desempenho sexual de um homem que tinha conhecido – porque ele tinha “só um sinarzinho [sic]”.
O começo da mensagem -“Neeeeeeiva, do céu!”- virou meme. Um segundo áudio chegou a circular, com Dias dizendo que alguém estava armando ao imitar sua voz e que ela não fazia “essas coisas”.
Depois, admitiu que era ela em programas na internet e na imprensa. O escritor e roteirista Antonio Prata, que também é colunista deste jornal, acredita que o humor dos áudios é reforçado pelo fato de quem ouve nunca sabe ao certo se é verdade ou mentira. “O da Neiva eu tinha certeza que era roteirizado”, diz.
“Algo real é mais interessante ou dramático do que algo ficcional. É aquela história da suspensão da descrença nas obras de ficção. Como o áudio já traz essa dúvida, a suspensão da descrença é mais fácil.”