Um dia lindo na Ilha de Paquetá, aventura com os amigos. O que poderia dar errado? Mas uma vozinha dizia em sua cabeça: "Não é possível ser tão feliz."
Estava radiante com a permissão do pai que quase não a deixava ir a lugar nenhum além da escola – tinha medo que a filha se afogasse em piscinas. Aquele passeio, porém, era a liberdade conquistada. Estava ali, em situação de igualdade com os colegas, dentro do ônibus que levaria a turma até o local de onde sairiam as barcas. Era uma felicidade tão sem tamanho que a menina não se lembrou de dormir. Passou acordada arrumando a mochila e escolhendo a roupa certa – nos passeios, os uniformes eram dispensados e isso era parte da alegria maior: poder se vestir com a cara que ela quisesse.
De manhã cedo, estava de pé sem sono.
Comeu o pão com manteiga e tomou o chocolate gelado que a alimentaria até a hora do lanche coletivo. Fazia sol, era muita coisa boa para caber em um só dia, pensou. Tinha medo quando uma alegria vinha em bando. Achava que várias aleluias não cabiam em um espaço pequeno, como se um desenho lindo com barcos e pores de sol não pudessem dividir a mesma tela – algo sairia do prumo, cairia, borraria, não era possível ser tão feliz.
Desconfiada com a bênção do passeio permitido em um dia ensolarado, ela entrou na barca. A programação seguia perfeita. Logo chegariam à pacata ilha. Como a menina sonhou conhecer Paquetá e andar livremente de bicicleta pelas ruas! Nada poderia fazer com que aquele dia não coubesse na “tela” da sua imaginação e memória.
Sim.
Não.
A menina sabia que, quando uma ponta de desconfiança nascia do lado esquerdo dos seus olhos, algo estaria por acontecer. E foi de repente, sem que tivesse condição de impedir. Ela estava no comando de uma das bicicletas alugadas pela professora, com tranquilidade porque queria sentir a brisa na cara sem pressa. Foi quando uma das colegas surgiu por trás em uma velocidade incompreensível e, incapaz de frear, por maldade ou falta de rumo, passou por cima da menina, que foi atravessada pela bicicleta. A menina ficou esfarelada no chão de terra fininha.
Por um destes milagres da natureza, depois que a turma curiosa ao redor se dispersou, a menina atravessada conseguiu se levantar e percebeu não ter quebrado nada – apenas um rasgo imenso nas costas, a imagem-carimbo, a única marca do acidente que levaria durante décadas.
A colega culpada se desculpou até as lágrimas.
Mas nada poderia fazer. O dia já tinha acabado. Tudo o que a menina queria era voltar para casa e espalhar para fora de sua tela mental a lembrança daquele atravessamento. Havia o corte nas costas, mas era nas costas, ela não veria para se lembrar. Logo chegou o fim da tarde, todos a postos para a volta. A menina não poderia deixar jamais que seu pai descobrisse.
Quando a turma chegou ao local das barcas, o pai estava lá para buscá-la. Com um sorriso morno, ela tentou disfarçar que tudo tinha corrido bem. Até que… a tal amiga surgiu novamente por trás e falou: “Me desculpe mais uma vez. Tá doendo muito ainda?”
A sentença de morte. O pai desesperado olhou para ela e perguntou: “O que aconteceu?”
Antes que a menina respondesse um “nada não”, a colega se antecipou para contar TODA a verdade. Pronto, seria o fim de alegrias futuras. Nunca mais ele a deixaria ir a passeios. E, se ela queria esquecer o ocorrido, não conseguiria. Porque o pai vez por outra perguntava se ela não estava tonta. Ele achava que poderia acontecer uma silenciosa hemorragia interna tempos depois de uma queda…
Não conseguiu fazer com que a lembrança do passeio de bicicleta com brisa na cara na ilha pacata prevalecesse. Era muita coisa boa para caber em um espaço pequeno – sempre algo sai do prumo, borra ou cai.
Não era mesmo possível ser tão feliz.
Jornalista e escritora, autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)