Por trás da rotina aparentemente ínsipida de um domingo, descortinam-se centenas de possibilidades de vida não realizadas.
Claudia Nina | 30 de Maio de 2021 às 10:00
A calça cinza não saía de casa sem que o cinto a apertasse bastante acima da cintura, quase na altura da barriga. A camisa bege claro obedecia ao comando de se acomodar inteirinha dentro da calça. Um não andava sem o outro, mas não pensem que ele era sujo: a roupa quase sempre era a mesma, mas dava tempo de lavar e secar. Ele tinha outro par de calça cinza e blusa bege, por isso conseguia alternar.
Com a aposentadoria, conseguia ter uma vida confortável em seu apartamento do Flamengo. Podia até pagar o salário da Mafalda, que o ajudava nas tarefas de casa, indo três vezes por semana. Fazia o almoço que era carne de panela com algum legume. Terça e quinta ele mesmo preparava ovo mexido com o arroz que esquentava na frigideira. Estava sempre bem alimentado.
Sentia falta dos netos que nunca tivera – não confessava a saudade desta ausência a ninguém, mas havia quem adivinhasse, pois o tamanho do rombo estava escrito no canto do olho esquerdo. Também lhe fazia falta a mulher com quem nunca se casara.
Se os netos impossíveis fossem visitá-lo no domingo, ele não sairia de casa para seu compromisso de sempre e ainda pediria à Mafalda que fizesse um bolo formigueiro. Mas ele não tinha netos porque nunca teve filhos. Tampouco conheceu a mulher com quem nunca se casou e não teve filhos.
Seria um solitário completo não fosse a Mafalda, que pontualmente chegava às segundas, quartas e sextas. Ela trazia palavras vindas de fora da casa. Mafalda adorava falar e ele adorava ouvir alguém além dele mesmo.
Naquele domingo, pontualmente se arrumou e esperou, como sempre fazia, o shopping abrir. Não faltava a seu compromisso. Criou uma rotina que precisava ser obedecida porque senão teria muito azar. Dentro dele era assim: rotina desobedecida era pior do que espelho quebrado. E tinha que ser shopping, porque era mais seguro. Abandonou o hábito de frequentar uma praça do bairro porque perdeu a coragem de se expor em praça pública, com tanto assalto por aí.
Mais um domingo como todos os outros, sem netos que o visitariam para comer bolo formigueiro. Chegou ao shopping e subiu as escadas rolantes rumo ao segundo andar. Foi direto ao local de sempre, que vendia mate e pão de queijo.
Sentou-se e tirou do bolso seu bloquinho de palavras cruzadas.
Ao som da falação animada do ao redor, ficava eufórico em seu ritual inalterável. Fazia a palavra cruzada – como aquele homem gostava de palavra! Ali ele ficava até terminar de fazer a última página. Depois fechava o bloquinho, recolhia-se da cadeira, não sem antes comer um pão de queijo. Não tomava o mate porque atrapalhava o sono. E voltava para casa. Domingo era um dia muito alegre. E, na segunda-feira, Mafalda traria mais palavras de fora. Como era feliz, ele pensou.
As palavras cruzadas – de fora e de dentro do bloquinho – tinham o poder mágico de fazer com que ele se esquecesse da mulher, dos filhos e dos netos que nunca conheceu.
As férias incríveis e inesquecíveis
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Quando uma rosa não é uma rosa
Em busca de um tempo perdido