Uma infância marcada pela crueldade deixa marcas que não se apagam. Mas algumas pessoas preferem deixar essa verdade trancada no armário.
A mãe talvez não tivesse tanta culpa assim. A verdade é que ela preferia não saber o que acontecia com a filha quando ela a deixava na casa da avó paterna para trabalhar na cidade vizinha. Aprendeu na igreja: quando não se conhece a verdade, o pecado é menor. Por receio de que, se viesse a conhecer a rotina da menina durante a sua ausência, o conhecimento pudesse ser usado contra a ordem estabelecida dos fatos, preferiu o silêncio. Até porque a menina ainda era pequena para ter a “coragem de”.
“Coragem de”. Qualquer coragem. Uma coragem pequena já bastava.
A semana começava antes do sol nascer de segunda-feira.
A mãe tirava a menina da cama com a mão gigante.
– Anda, levanta, tá na hora, não vai dar tempo de trocar de roupa, vai de pijama mesmo.
A menina ainda dormia e só acordava no meio do caminho para a casa da avó. A calça do pijama azul arrastava no chão de terra da cidade mínima. Tudo escuro, nem a padaria aberta, ninguém testemunhava a cena. Se alguém visse, poderia ser uma cena triste. Mas, como não havia olhos para esquadrinhar a penumbra, a menina sendo arrastada pelas ruas não existia. A velha na porta esperava as duas para nem oferecer um café. Vai que aceitassem? Gastar mais dois pães todo dia era prejuízo. Caridade inútil.
O silêncio e a escuridão eram maiores depois que a mãe soltava as mãos e ia embora. A maldade da velha era uma fundura de poço. Não deixava a menina ver a mãe sumindo até nunca mais.
Uma semana inteira sem ver a mãe era um nunca mais.
Fechava a porta, e estavam as duas uma de frente para a outra, o confronto desigual. A menina, esperta, fez no começo algumas tentativas de enternecimento, ensaiou vários olhares indefesos à espera de alguma comiseração. Ficou pior. O ódio da velha espumou, e a menina ficou mais tempo trancada no armário.
Era assim. A casa da avó ficava dentro do armário de roupa vazio, mofado, ser ar quase, uma escuridão de morcego, a menina apavorada lá dentro, não podia sair nem para ir ao banheiro. O armário assombrado.
– Anda que não tô com tempo. A sua mãe devia saber que não presto para tomar conta de criança, tenho mais o que fazer.
O barulho da porta do armário se fechando era a última palavra.
Na primeira vez em que ficou presa lá dentro, a menina berrava tanto, mas tanto, que quase perdeu os sentidos. E de nada adiantou. A avó estava na horta, no quintal ou então resolvendo outras coisas. Alguém haveria de imaginar que até colocar a menina para trabalhar pesado seria menos cruel do que o abandono do armário.
Mas quem disse que a velha queria uma crueldade menor?
Não se sabe ao certo por quanto tempo a clausura durou. Foi o tempo em que a mãe precisou depositar a menina na avó. Até o dia em que ela finalmente conseguiu um emprego melhor, mais perto, e pode pagar um colégio para a filha.
O último dia, quando ela pegou de volta as mãos da menina para nunca mais devolver à velha, a menina já estava irrecuperavelmente marcada pela escuridão. Ao longo do resto da infância, perdida para sempre, não conseguiu mais reacender o olhar indefeso. E, por toda a vida, ela buscou outra memória que significasse o tempo em que se brinca, mas não achou nada.
Por Claudia Nina – [email protected]
Jornalista e escritora – autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)
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