O dia da menina, que já se anunciava entediante, ganhou contornos mais trágicos e entediantes quando no caminho dos pés da menina surgiu um prego.
Era de praxe irem ao Jardim Botânico antes da escola. Uma espécie de ritual que ela, desde bem pequena, não contestava. A prima tinha vindo de Minas, era feriado na cidade dela. As duas de sandalinha, os pés imundos de terra.
Como a prima era mais calma, a menina era obrigada a diminuir sua voltagem; naquele dia. Não subiria em árvores. O problema a vencer era o tédio. O passeio era uma caminhada e só. Ainda bem que o resto da tarde tinha um recreio dentro dele, e ela poderia ir à forra. Um dia sem brincadeiras mais radicais era um dia perdido.
Seria um passeio bucólico não fosse o prego.
No meio da caminhada, um dos pés escolhidos para o martírio foi justamente o da menina – o prego entrou por dentro da sandalinha. Não chegou a atravessar porque a menina logo sentiu e tirou o pé, deu um grito e se livrou. Mas foi o bastante para machucar, sangrar e cancelar o passeio na hora. Voltaram para a casa imediatamente, ela mancando, uma dor imensa. Parecia que um prego imaginário afundava na sola do pé toda vez que ela tocava no chão.
Quando chegaram em casa, o pai ainda não tinha saído para o trabalho. Estava quase indo embora, já com a jaqueta de sempre e a pasta de alça. Ela respirou aliviada porque ele era seu salvador. Arrastando o pé até o banheiro, a menina segurava o choro. Seria forte para aguentar até o fim aquela dor.
Quando viu a cena, o pai praguejou.
Ele, que não podia ver a filha em apuros, não suportou o pé cravado por um prego. Ignorou a presença da mãe e começou a limpeza do machucado dentro do bidê. Enquanto fazia a higiene, condenava a sandalinha.
– Não tem que sair assim, com o pé de fora, sem equilíbrio! – e apontava para a sandália da prima que também andava em erro.
A mãe se manteve silenciosa durante todo o preparo dos curativos. E não foi capaz de dizer nenhuma palavra em defesa da sandalinha, que foi atirada aos porcos.
Depois do curativo feito, o pai foi embora trabalhar, e as três ficaram silenciosas, esperando o fim da tarde. Não teria colégio para a menina naquele dia, que perderia o recreio e qualquer possibilidade de redenção do tédio.
Muito tempo depois, aprendeu a pensar sobre a inércia da mãe – como perdoar?
Mais importante: precisou aprender, a duras penas, a não esperar por salvadores.
Eles condenam sandalinhas.