Ver os filhos chegarem à idade adulta nem sempre é uma experiência tranquila para os pais. Às vezes eles recorrem à fuga para cortar os laços.
Claudia Nina | 10 de Novembro de 2019 às 09:54
A situação entre os dois andava de mal a pior. Ela já quase adulta na faculdade. Ele, o pai, envelhecendo sem se dar conta de que a menina não voltaria nunca mais para casa. Não se entendiam. A conversa não existia até porque as músicas que ela gostava de ouvir na sala ele detestava. Com mão forte de autoridade, baixava o volume a ponto de transformar a música em um sussurro. Ela tinha ódios. E os ódios cresciam com ela.
Até que um dia, na hora do almoço, ela começou a discordar com ênfase de um assunto que o pai dominava. A mãe, sempre de poucas palavras, não tinha nenhuma que prestasse para se opor a qualquer coisa que ele dissesse. A filha tinha ideias. Uma delas bateu de frente com o pai, ficou imensa na mesa como se fosse uma bolha gigante e colorida, flutuando em cima dos pratos sem que ninguém soubesse o que fazer com ela.
Quando constatou enfim que a bolha iria crescer cada vez mais e se espalhar pela sala, quem sabe explodir, ele resolveu explodir antes. E socou a mesa com raiva. E gritou o nome dela. Parecia que os olhos iriam saltar. A sala estremeceu. Menos a filha que tinha ideias. Uma delas foi aproveitar o momento e fugir.
Saiu pelas escadas porque não queria que o tempo de espera do elevador a confrontasse com nenhum vizinho nem com a mãe que, no corredor, pedia para que não saísse daquela forma. Do último degrau, ela viu a mãe encurvada na escadaria implorando para que voltasse. Impossível. A menina não voltaria mais para casa. Não a filha que eles pensavam que ainda tinham.
Então ela rodou pela cidade até anoitecer. Tinha muitos ódios acumulados. Não poder ouvir a música que ela queria na própria casa era por exemplo a prova de que o tempo da liberdade tinha chegado e era urgente. Só voltou para casa porque não tinha um centavo e não queria se sentir culpada caso a bolha gigante que deixou pendente explodisse pela sala. Voltou em silêncio, todos dormiam. O que fizeram com a bolha?
Aquela pequena fuga seria apenas o ensaio para fugas maiores. Gostava de ser meio perdida. Aguentou a espera do tempo para que chegasse a hora de não precisar mais ficar – só no Natal, a mesa reunida, todos fingiriam que estava tudo bem e cada qual esconderia seus pequenos rancores e tristezas. Não se fala de coisa ruim no Natal.
O que fizeram com a bolha gigante que naquele dia surgiu na mesa é um mistério.
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Clarice Lispector tem uma frase que eu adoro: “Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.” Muitas vezes, socialmente ou em família, quase ninguém toca o nervo das verdades ocultas – cada um fala o conveniente para evitar afrontamentos. Mas eles existem e insistem…