O senhor na sala marrom

Uma repórter iniciante se rebela diante de um entrevistado que não tem nada a dizer, a não ser exibir toda a sua opressão.

Redação | 17 de Fevereiro de 2019 às 08:00

nortonrsx/iStock -

Ser a repórter mais nova do jornal – recém-formada – trazia para ela a certeza de que as piores pautas lhe seriam dadas. Eram um presente para “testar” sua capacidade de agarrar com a unha o que os veteranos desdenhavam. E de fato ela agarrava porque tinha uma vontade imensa de matar o tédio fazendo alguma coisa útil.

Aquela semana em especial, o teste foi mais cruel. Separaram para ela uma encomenda do dono do jornal: entrevistar um amigo dele que havia escrito um livro. Ela sabia que seria carne de pescoço, mas não se negou. Foi na confiança de quem sabia poder tirar algum leite daquela pedraria. Confiava na própria capacidade de inventar uma história onde não havia nada a dizer.

Quem sabe o livro é bom… Quem sabe o autor é alguém interessante…

Não quis minar totalmente as falsas expectativas, embora soubesse que a missão era uma perda de tempo e de palavras. Antes de sair da redação, pensou: se for muito ruim a coisa, escrevo sobre o livro, mas não assino.

Quando chegou na casa do autor, logo foi recebida por uma jovem senhora de cabelos castanhos bem lisos que não disse muita coisa. Só deu um meio sorriso tímido e mostrou o lugar onde ela se sentaria para ouvir a “história” daquele autor que seria personagem de sua pauta-missão-furada. A repórter se sentou onde lhe mostraram, por obediência.

Esperou quase meia hora na sala marrom, clássica, cheia de livros marrons. Tudo ali parecia ter a mesma cor. Já estava quase desistindo de esperar. Faltava pouco para ela pensar que talvez não devesse ter sido tão obediente ao aceitar o que os veteranos recusaram…

Até que de repente entrou na sala um homem com forte sotaque nordestino – era ele.

Antes de cumprimentar a repórter, foi logo pegando seu livro que devia ter umas 400 páginas. Ele não cumprimentou a repórter nem depois de pegar o livro. Começou a contar a sua história de vida – um resumo da obra que era na verdade uma autobiografia. A repórter não tinha o hábito de usar gravador, porque gostava de prestar atenção na conversa. Se gravasse, facilmente se desprenderia do momento e se desligaria, confiante de que o gravador lhe devolveria a fala dispersa. Ela anotava em seu bloquinho as citações mais importantes. No primeiro parágrafo da fala do homem, percebeu que talvez não teria nada a anotar.

O tédio percorreu todo o corpo da repórter como se fosse uma corrente elétrica. Ela, que tinha sido obediente, sentia ódio de sua incapacidade em se insurgir contra aquela pauta. Ou melhor, aquilo nem era uma pauta, mas um homem que não tinha nada a dizer e se comportava de forma insuportavelmente narcisista.

Como ela já havia chegado até aquele ponto de obediência, não havia o que fazer a não ser escutar com alguma paciência um relato que não tinha fim.

Mas o pior ainda estava por acontecer.

Em um determinado momento, ele disse:

– Minha filha, me traz aqui um copo d’água.

Quem seria a filha?, pensou a repórter, imaginando que uma filha estivesse de fato em algum canto da casa marrom.

Mas a surpresa foi que a “filha” era a moça que a havia recebido e não tinha idade para ser filha do homem que era relativamente jovem também.

A moça obedeceu ao comando e trouxe o copo.

A repórter mudou de foco: não queria mais saber da história que o homem contava, mas o que representava aquela mulher dentro da vida do homem e por que ele a havia chamado de “filha” em um tom de mando.

A conversa seguiu sem interesse e sem fim.

Chegou o momento em que, três ou quatro horas depois, a repórter decidiu terminar. Não aguentava mais o martírio.

Com o livro que ganhara de presente nas mãos, apressou-se para ir embora, dando uma desculpa de que havia um carro esperando por ela para voltar à redação antes do anoitecer.

Pronta para se dirigir à porta da rua, percebeu que a “filha” era casada com o homem. Aquela mulher quieta e obediente, que entrava e saía quando ele mandava e escondia o rosto no cabelo comprido, era algo parecido com uma esposa.

O tédio na corrente sanguínea foi rapidamente se transformando em uma forma de ódio por aquele homem que não tinha nada de interessante a dizer e ainda por cima oprimia a mulher. A repórter quis perguntar à mulher o que a prendia naquela sala marrom, mas a vontade de sair dali era maior do que a curiosidade.

No entanto, o golpe maior ele deixou por último:

– Mas você vai me trazer aqui o texto para eu ler e corrigir antes de publicar!

Aquela frase foi uma pena de morte para o homem que morreu ali, diante da repórter que jamais pediria permissão a qualquer entrevistado. Que audácia!

O tédio que virou ódio se transformou em uma raiva tão gigante que espumou pela boca.

– NUNCA!

Jamais em tempo algum ela faria o papel de entregar o texto para aquele homem opressor deliberar o que ela deveria escrever.

Bateu a porta do apartamento com pena por deixar a mulher silenciosa nas garras daquele medonho. Assim que chegou à redação, elevou o tom de voz e gritou:

– Não vou escrever NADA sobre aquele livro nem sobre aquele senhor medíocre.

E antes que a raiva tomasse conta de toda sua pessoa, jogou o livro no lixo da redação. Os colegas jornalistas de pé observavam a cena.

A sala do dono do jornal era ao lado. Que bom, ele ouviu, ela pensou.

Aquele seria o primeiro dia da sua carreira jornalística. O dia em que se negou a dar voz a um opressor. Suas palavras, ele não teria.

Por CLAUDIA NINA – claudia.nina@selecoes.com.br
Jornalista e escritora, autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)

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