Uma história e uma lição a tirar: o que parece milagre para uns nem sempre é para outros. Para receber o milagre, é preciso saber enxergá-lo..
Tudo o que um escritor quer são histórias para inventar. Mas é raro partir da invenção pura – ainda que se queira escrever o fantástico, histórias reais são o suprassumo na vida de um autor. Ele é aquele ser bizarro com vários olhos e antenas que, mesmo quando finge não estar atento ao mundo, usa a distração como disfarce para melhor observar situações e pessoas, capturar histórias na transversal, investigar horrores e imensidões escondidas nos relatos aparentemente prosaicos.
Uma dessas me atravessou os ouvidos outro dia e levou minhas retinas imaginárias para um lugar perto de Sobral, no Ceará. Quem me contou não se chama Benedita, mas o nome dela não quero dizer – de real, só o miolo da história. O resto é invenção.
Seria uma manhã como todas as outras na terra cor de mandioca de Benedita, não fosse um milagre acontecer na rota que ia da pequena roça para a casa e tinha a bodega do Seu Pancrácio no meio do caminho.
O milagre da multiplicação das chinelas de dedo
Pancrácio tinha encomendado da capital um certo número de chinelas. Acontece que a encomenda veio exagerada e não havia no lugarejo quem arcasse com o prejuízo. A usura do homem não permitia que ele partilhasse. Coisas vindas da capital são sempre mais caras, pois têm o preço do frete embutido. Ele preferiu guardar a encomenda em um baú, quem sabe conseguisse vender depois. Mas os ratos logo descobriram o tesouro oculto de borracha e partiram para o ataque. Em pouco tempo, desmembraram as chinelas. Quando o homem percebeu, virou uma fera em desespero. E derramou os restos que os ratos não tiveram tempo de finalizar no meio da rua.
Benedita passava. Mal acreditou no que via. Pensou que nem tudo estava perdido e talvez aquele fosse um dia de sorte. Abraçou o maior número de chinelas desmembradas que pôde e levou para casa, onde ela e as irmãs se puseram a costurar os retalhos, tentando refazer alguns pares que, mesmo monstruosos, serviriam para que os irmãos cobrissem os pés sovados de tanto andar descalços.
Aquele foi um dia abençoado – pelos ratos.
Por Claudia Nina – [email protected]
Jornalista e escritora, autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)
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