Reagir àquele transtorno com desespero não era a única opção para ela. Nossa personagem optou pela mais absoluta calma e o mergulho de cabeça no problema.
Redação | 2 de Junho de 2019 às 09:06
Ele “ainda pensou que seria bom, agora, não ser mais regato, nem fonte, nem lago, mas rio farto, caminhando em direção à rua, talvez ao mar”.
–Caio Fernando Abreu
Naquela semana pós-carnaval, estava mais cansada do que nunca. Tinha acabado de voltar de um lugar longínquo – sempre precisava estar onde o carnaval não estava. Depositou as malas na entrada da casa e foi dormir cedo. Era um sono devastador. Talvez o Carnaval e a sua força avassaladora estivessem no ar e, mesmo em uma ilha deserta, seria capaz de sentir o incômodo. Estava cansada de alguma coisa que não sabia dizer o que era. Cismava em explicar tudo, mas não tinha explicação para o fato de precisar de um sono maior – só isso, cansaço e pronto.
Entregou-se à falta de explicação e afundou o corpo exausto no edredom. Ligou o ar para fingir um clima de montanha em pleno fevereiro e fechou a porta do quarto. Silêncio, solidão, o friozinho inventado.
A noite foi mais longa do que todas as outras da sua vida.
Quando já era dia claro, sol crepitante, dentro do quarto a noite seguia. Lentamente, ela começou a dar sinais de espreguiçamento ao ouvir de longe, como em um sonho, a água escorrer. Pensou que estava em uma sessão de relaxamento, e isso fez com que o sono voltasse, e novamente afundou no edredom, clima de montanha, frio inventado… O som de água jorrando – fonte, torneira ou mar – insistia.
Dentro do sono vasto da noite, ela achava que as águas eram a melodia necessária do refazimento completo. Como andava cansada.
Até que, lentamente, resolveu se levantar para testar sua existência. Precisava saber se ainda era uma pessoa no mundo. Assim que abriu a porta do quarto, desfilou os pés pelo corredor ligeiramente molhado (que água era aquela?) até chegar à porta fechada da sala.
Quando abriu, a surpresa: havia um rio escoando por todos os lados possíveis da casa.
Quando abriu, a surpresa: havia um rio escoando por todos os lados possíveis da casa.
O barulho da água escorrendo era real, e ela sentiu isso quando os pés tocaram o riacho em pleno tapete.
Em vez de tomar uma medida urgente, o cansaço voltou e, ao embalo do barulho hipnotizador da água, ela andou pelo rio improvisado na sala como se estivesse em uma piscina rasa, deixando-se levar, abandonando tarefas, obrigações, responsabilidade. Ficou ali, deslizando nas águas, que iam subindo como se a maré de repente pudesse irromper dentro do rio.
E mergulhou, enfim.
Era um sonho-delírio do qual acordou ensopada e em pânico.
A noite mais longa do mundo chegava ao fim.
Nota: A ideia de escrever esta história semi-real surgiu da leitura de um delirante conto de Caio Fernando Abreu, que se chama “Mergulho”. Aos curiosos, um dia, de fato, eu acordei e minha casa estava alagada. Custei a reagir, mas não demorei tanto quanto a personagem da história aqui contada.