O homem eternamente deitado na varanda

A varanda era o refúgio dela, num tempo em que estava enclausurada no apartamento. Mas, com os olhos, o vizinho se apropriou desse espaço.

Claudia Nina | 28 de Março de 2021 às 10:00

Ben Wehrman/iStock -

No início eram apenas algumas aparições rápidas, uma leitura pela tarde, alguns minutos de noite, o homem deitado na rede na varanda ao lado não invadia tanto. Mas, mesmo assim, já era incômodo olhar para o lado e ver a cabeça do homem virada para o apartamento dela. Os olhos profundos como os de uma lagartixa ficavam de cara para a casa dela, quando ele teria a opção de deitar virado para o lado oposto e vislumbrar a baía com os barcos. Em ver de inspecionar o espaço dos outros, no caso, o espaço dela.

Sempre que o homem estava plantado na rede ao lado, ela recuava e desistia de ficar na varanda, seu espaço ao ar livre – era mesquinha com aquela reserva ecológica e íntima e, por isso, considerava uma afronta não poder escolher a hora de ficar lá, por conta dos olhos invasores do homem. Sim, ele foi aos poucos estendendo o tempo de permanência e nunca teve a decência de virar o corpo para os barcos.

Por que a insistência em deitar a cabeça do lado errado da rede?

Os dias claros pediam varanda, leitura, espreguiçamento na cadeira com almofadas que ela tinha providenciado para aproveitar melhor seu espaço ao ar livre naqueles dias de clausura. Mas seus planos foram por água abaixo, porque simplesmente não conseguia ser livre sabendo que os olhos de lagartixa a olhavam. Talvez não estivessem de fato olhando para ela. Não importa. Nem teria coragem de confirmar. Odiava aquele invasor que poderia virar seu corpo na direção dos barcos, mas, por maldade, resolveu se colocar inteiramente virado na direção da casa dela. Uma inaceitável invasão de privacidade.

Um dia encontrou o homem na garagem. Ele a reconheceu de pronto, pareceu dar uma tremida, ficou sem graça, aprumou o cabelo ensebado. Ela o odiou ainda mais – era premeditado! O homem realmente estava disposto a invadir seu espaço por algum interesse que ela não queria descobrir.

O que fazer para mostrar que o odiava por isso?

Invasor nojento, era como se ele estivesse de fato dentro da casa dela, tamanha era a lonjura que aquele olhar alcançava. Um dia teve a brilhante ideia de comprar uns vasos de plantas bem altas para fazer uma cortina capaz de apagar a imagem daquele homem, cortá-lo ao meio, destruir seu alongamento. Estava feliz com a solução até o momento em que, da sua cadeira, conseguiu ver, através da folhagem, os olhos profundos que pareciam reluzir na noite bem em direção à varanda dela, o espaço sagrado invadido para sempre. O homem passou a morar na rede com o corpo virado para a casa dela – tinha se tornado um objeto, eterno como um vaso de planta.

Foi então que ela abandou de vez a varanda. Quem sabe quando ele morresse? Queria fazer aquele homem sumir. Enquanto isso não acontecia, preferiu sumir. Estar na mesma linha de horizonte daquele corpo esfacelado na rede com olhos de lagartixa cravados no mundo dela era alguma coisa próxima ao horror.

Que falta sentia de quando a varanda era só dela. Tempos difíceis…

POR CLAUDIA NINA – claudia.nina@selecoes.com.br

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