A celebração de um aniversário pode não ser um momento de pura alegria, como costumamos acreditar. Nascer no dia dos mortos tem um lado sombrio.
Claudia Nina | 3 de Novembro de 2019 às 08:00
Sabia que, em algum momento, o fato de ter nascido no dia dos mortos ia trazer um agouro – a infância e a adolescência a pouparam, mas os 50 anos trouxeram a doença do pai. E com ela a iminência.
A mesa posta, tinha o macarrão com vinho do Natal. Seu aniversário sempre antecipava o cardápio familiar sem muitas opções. Não que ela quisesse aquela comemoração, mas percebeu que, depois dos 45, a família passou a administrar suas escolhas, como se o corpo e a agenda fossem comunitários.
Tudo foi medido e conduzido para que ela aceitasse aquele dia dos mortos-vivos que, afinal, era seu aniversário, da maneira como deveria ser: em família.
Há quanto tempo não ia à praia, caminhar na areia, ver o pôr do sol… Olhar o horizonte era uma forma de comunicação com o universo, ela pensava, uma tentativa de perceber a existência de mundos distantes. Se ela ousasse dizer que precisaria deixar a mesa para ir à praia passar seu dia – que afinal era “dela”, um presente da vida – se ela tivesse esta coragem, seria punida, porque a mesma legião que determinava sua agenda também costumava se reunir para julgamentos. Como naquela vez que decidiu escurecer os cabelos. Foi linchada. Nasceu loura, ficou horrível morena; as pedras eram os olhares.
Então, para facilitar as coisas e agradar também às filhas, fingir-se de calma e amena, o que só conseguia com uma conciliação (quase uma domesticação de si mesma) entre seus lados manso e nervoso, resolveu aceitar a agenda que lhe impuseram.
Todos servidos de macarrão – menos ela, que não comia massa, mas isso era um detalhe. Tinha ovo mexido e salada, que ótimo, a família estava feliz. Mal começou o ritual, o pai colocou as mãos na cabeça, o prato ainda intocado. E disse:
– Vou embora.
A tia do lado não entendeu bem e falou:
– Vai para onde? Não vai almoçar primeiro?
O pai repetiu:
– Não, estou indo para outro lugar.
O teatro familiar não permitia que as pessoas deixassem evidente que entenderam o anúncio de morte naquela mesa de aniversário.
Ela ficou quieta. O que dizer? Deixa de drama, vamos comer, o que é isso, pai?, que delícia essa comida, nossa, mas esta semana fez calor.
Se ele realmente fosse “embora” naquele dia dos mortos, a despedida daria algum sentido à data.
O pai se levantou e foi para o quarto se deitar no ar.
A família continuou na mesa para dar seguimento aos “festejos”. Se ele não morresse, era preciso comemorar um nascimento, no caso o dela, a filha.
Quando o almoço acabou, o pai voltou para a sala. Tinha ressuscitado.
Não seria naquele aniversário que nascer no dia dos mortos faria sentido.
Ele voltou a tempo de comer o bolo – tinha até vela.