Viver representa tantos perigos que até uma tarefa rotineira como fazer compras em um dia tranquilo pode abrigar histórias de perigo.
Existe uma medida muito milimétrica que, de tão ínfima, até os matemáticos desprezam. Mas esta medida pode salvar uma vida. Salvou a minha. Foi outro dia, eu voltava do mercado, as duas mãos ocupadas com sacolas. Fazia o trajeto de sempre – ninguém está preparado para os imprevistos até que eles aconteçam e mostrem o tamanho do nosso despreparo diante dos imprevistos. E ninguém está preparado para morrer; nem mesmo para quase morrer. Naquela manhã tão mansa e ensolarada, com o frio leve do outono tardio, eu nunca poderia imaginar que o cenário luminoso esconderia uma tragédia. Inocentemente, voltando do mercado com as sacolas em punho, eu confiava na certeza do trajeto de sempre, guardada pela segurança de um dia claro.
Mas é preciso saber: dias claros também são perigosos. Não se pode confiar que, entre o céu e a Terra, o azul desabrigado não irá se romper de repente para que algo fora da ordem aconteça de repente.
Foi quando aconteceu o “triz”.
Voltemos ao trajeto de sempre e às sacolas em punho. Eu saía do mercado na direção de casa. Havia uma única rua a ser atravessada. Uma única direção a ser olhada para a atenção com os carros – a menos que eu suspeitasse que para o céu também devesse olhar, temendo que algo caísse na minha cabeça, mas isso seria um delírio e naquela manhã tão clara eu estava cheia de lucidez e bom ânimo.
Olhei na direção dos carros e, quieta, na calçada, esperei que os veículos parassem para atravessar. O sinal fechou e, obedecendo à lei e a ordem, todos os carros pararam. Era a hora de ir. Antes que o primeiro pé se soltasse da calçada na direção da rua, naquele milímetro que por falta de outra palavra que nomeie a menor medida possível vou chamar de “triz”, eis que uma bicicleta voa na minha direção e quase me atravessa sem me tocar – só toca minimamente uma ponta ínfima do meu pé.
O resto de mim não foi percebido.
Depois de (quase) não me ver, a bicicleta voou na direção de uma moça que estava a poucos metros de distância de mim, ao lado, igualmente esperando os carros pararem para ela atravessar. Eu, com as sacolas na mão, não me mexia mais – fiquei estática diante da cena: a moça ficou estatelada no chão depois de ser atravessada pela bicicleta. Uma poça de sangue começou a se formar no chão. O homem da bicicleta rolava no mesmo chão ensanguentado, o rosto em desespero.
Na mesma hora, uma ciranda de pessoas se formou ao redor da moça. Eu ainda não conseguia me mexer – por um triz, eu seria a moça no chão.
Vi que foi também por um triz que ela não morreu. Logo começou a se mexer guiada por mãos socorristas. A multidão é solidária. Enfim consegui atravessar a rua depois que percebi que a moça havia sobrevivido ao imprevisto do dia claro.
Voltei para casa com a sensação de que poderia não estar voltando. Louvei a existência do “triz”, mas busquei nos meus não gestos uma possível culpa para a quase morte da moça. Mas eu não tive culpa, analisei por fim. O dia claro também faz suas escolhas. É preciso estar atento a elas.
Por Claudia Nina – [email protected]
Jornalista e escritora, autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)