Nesta história de inspiração passada em uma casa de repouso, a narradora se pergunta o que fazer com as palavras ouvidas.
Redação | 1 de Julho de 2018 às 10:13
Tudo seguia uma rotina que ia pouco a pouco me transformando em uma planta, antecipando o momento em que eu faria a fotossíntese ao lado de Gétebra e Eloá, as duas senhoras que brincavam como se fossem crianças. A partir daí, eu me sentaria no jardim e embalaria uma boneca, com a certeza de que era um bebê de verdade.
Faltava bem pouco para isso. Eu podia jurar quemeus 100 anos não demorariam a chegar.
Algumas frases soltas no meio da tarde me faziam prestar mais atenção a uma pessoa específica, como aquele dia em que Marcelina, a velhinha quase invisível, miúda e meiga, de repente, soltou:
– Já chorei muito.
Estavam todos acomodados assistindo à novela, o dia já sumia, e a hora da ceia também. Jantavam antes de escurecer. De repente, Marcelina anuncia que tinha chorado – e muito. Ela era de falar pequeno, pausado. Mostrava os dedos infantis alisando a roupa de malha. Alisava mil vezes, como se esticasse a massa de um pastel. Os dedinhos de unhas com o esmalte lascado tão antigo quanto ela.
Parecia uma senhora calma, doce, amaciada em suas fraldas escondidas dentro do moletom azul-marinho. Olhos apertados por trás de óculos de hastes fininhas.
Marcelina havia chorado.
Teria sido em algum tempo antes da internação? Parecia um choro tão antigo quanto os dinossauros. O mais curioso é que logo eu, para quem os jasmins poderiam ser esmigalhados por elefantes que não me fariam a menor falta, logo eu percebi a frase.
Todo o resto da sala estava ocupado demais com a novela ou com a louça suja do jantar. Só eu escutei. E não fiz nada. Não sabia o que fazer. Até porque havia uma grande possibilidade de Marcelina já ter se esquecido de que dissera “Já chorei muito”.
Então larguei a frase no chão, bola de gude.