A rotina é capaz de engolir um relacionamento e, se não houver um esforço consciente para que isso não aconteça, transforma as pessoas em meras peças de uma vida sem sentido.
Redação | 22 de Abril de 2018 às 08:00
Yasuko tinha se mudado para Amsterdã por conta do trabalho do marido. Eram vários os japoneses executivos instalados com suas famílias nos arredores. No caso de Yasuko, a família era só ela e o marido, ainda não tinham filhos, embora fosse o grande sonho da vida: preencher a mente e o coração com algo mais valioso do que uma rotina que não se alterava em nada, mesmo trocando de país.
A rotina era: preparar o arroz para o sushi do jantar (o almoço era só para ela, então um sanduíche servia), lavar a roupa da casa inteira à mão (não tinham máquina) durante as tardes e, de noite, começar o ritual de passar a roupa. Como o apartamento era um alojamento de estudantes, não havia espaço para que a roupa fosse estendida em uma área. Calças, camisas, lençóis e cobertas espalhavam-se pelos dois cômodos apertados.
O que modificou um pouco a rotina de Yasuko – ou muito, talvez, só o futuro diria – foi o encontro com a amiga brasileira, vizinha de porta, com quem passou a tomar chá todas as tardes, entre uma lavagem e outra de roupa. Esbarraram-se no mercado e de lá para frente tornaram-se boas amigas, a ponto de Yasuko fazer-lhe confissões, sempre tímidas, acerca da vida que levava e do quanto estava triste por não receber atenção do marido. Ele era “silencioso como um edredom branco” – costumava dizer, referindo-se à pesada peça de roupa de cama estendida na cozinha até secar totalmente.
Yasuko falava em inglês, a língua comum entre as duas amigas: “Se eu me calar, ele fica em silêncio o tempo inteiro. Só responde o que pergunto.” Por fora, faziam um casal bonito: ambos jovens, tanta vida pela frente. Por dentro, não pareciam existir um para o outro.
“Por que vocês se casaram?”, quis saber a brasileira, que não entendia a existência de casamentos no mundo, ainda mais entre pessoas que não se conectavam.
“Não sei”, respondeu.
O fato é que a pergunta instalou dentro da japonesa uma dúvida sobre a qual ela nunca tinha pensado. Não sabia o motivo real de ter se ligado ao rapaz silencioso que lhe dava o trabalho das lavagens de roupa e nada mais. A obrigação diante da família que fazia gosto no casamento poderia ser a resposta, mas com certeza não seria justificativa para ela seguir uma rotina tão infeliz. Já estavam casados havia 7 anos.
Incrível como 7 anos acabam em um dia. Pois foi assim: em uma manhã, depois que o marido saiu para o trabalho, as roupas molhadas pingando pela casa e as secas já na pilha de roupas passadas, Yasuko decidiu ir embora sem avisar ao marido. Simplesmente acordou decidida a voltar para o Japão e recomeçar a vida – não sabia em que porta bater, porque não queria que os pais a martirizassem pela decisão.
“Estou saindo”, disse assim, os olhos minúsculos espremidos pelas lentes grossas, ao se despedir da amiga brasileira.
“Saindo? Como saindo?”, de todas as hipóteses de “sair”, a menos imaginável era a de que Yasuko estaria saindo de casa.
“Vou voltar para o Japão”, falou.
A amiga não disse nada, apenas a abraçou com força. Choraram a saudade que já sentiam. Aquela partida era necessária, pensou a brasileira, mas não disse.
Abanou pela janela o tchau até Yasuko sumir no mundo.
Ela nunca mais deu notícia.
Quanto ao marido, sabe-se que não chegou a reparar que a mulher partira. Somente que as roupas estavam sujas. Tratou de começar a usar o serviço das máquinas de lavar do alojamento. Só era chato porque tinha uma fila enorme.