A rotina é capaz de engolir um relacionamento e, se não houver um esforço consciente para que isso não aconteça, transforma as pessoas em meras peças de uma vida sem sentido.
Yasuko tinha se mudado para Amsterdã por conta do trabalho do marido. Eram vários os japoneses executivos instalados com suas famílias nos arredores. No caso de Yasuko, a família era só ela e o marido, ainda não tinham filhos, embora fosse o grande sonho da vida: preencher a mente e o coração com algo mais valioso do que uma rotina que não se alterava em nada, mesmo trocando de país.
A rotina era: preparar o arroz para o sushi do jantar (o almoço era só para ela, então um sanduíche servia), lavar a roupa da casa inteira à mão (não tinham máquina) durante as tardes e, de noite, começar o ritual de passar a roupa. Como o apartamento era um alojamento de estudantes, não havia espaço para que a roupa fosse estendida em uma área. Calças, camisas, lençóis e cobertas espalhavam-se pelos dois cômodos apertados.
“Silencioso como um edredom branco”
O que modificou um pouco a rotina de Yasuko – ou muito, talvez, só o futuro diria – foi o encontro com a amiga brasileira, vizinha de porta, com quem passou a tomar chá todas as tardes, entre uma lavagem e outra de roupa. Esbarraram-se no mercado e de lá para frente tornaram-se boas amigas, a ponto de Yasuko fazer-lhe confissões, sempre tímidas, acerca da vida que levava e do quanto estava triste por não receber atenção do marido. Ele era “silencioso como um edredom branco” – costumava dizer, referindo-se à pesada peça de roupa de cama estendida na cozinha até secar totalmente.
Yasuko falava em inglês, a língua comum entre as duas amigas: “Se eu me calar, ele fica em silêncio o tempo inteiro. Só responde o que pergunto.” Por fora, faziam um casal bonito: ambos jovens, tanta vida pela frente. Por dentro, não pareciam existir um para o outro.
“Por que vocês se casaram?”, quis saber a brasileira, que não entendia a existência de casamentos no mundo, ainda mais entre pessoas que não se conectavam.
“Não sei”, respondeu.
Rotina infeliz
O fato é que a pergunta instalou dentro da japonesa uma dúvida sobre a qual ela nunca tinha pensado. Não sabia o motivo real de ter se ligado ao rapaz silencioso que lhe dava o trabalho das lavagens de roupa e nada mais. A obrigação diante da família que fazia gosto no casamento poderia ser a resposta, mas com certeza não seria justificativa para ela seguir uma rotina tão infeliz. Já estavam casados havia 7 anos.
Incrível como 7 anos acabam em um dia. Pois foi assim: em uma manhã, depois que o marido saiu para o trabalho, as roupas molhadas pingando pela casa e as secas já na pilha de roupas passadas, Yasuko decidiu ir embora sem avisar ao marido. Simplesmente acordou decidida a voltar para o Japão e recomeçar a vida – não sabia em que porta bater, porque não queria que os pais a martirizassem pela decisão.
“Estou saindo”, disse assim, os olhos minúsculos espremidos pelas lentes grossas, ao se despedir da amiga brasileira.
“Saindo? Como saindo?”, de todas as hipóteses de “sair”, a menos imaginável era a de que Yasuko estaria saindo de casa.
“Vou voltar para o Japão”, falou.
A amiga não disse nada, apenas a abraçou com força. Choraram a saudade que já sentiam. Aquela partida era necessária, pensou a brasileira, mas não disse.
Abanou pela janela o tchau até Yasuko sumir no mundo.
Ela nunca mais deu notícia.
Quanto ao marido, sabe-se que não chegou a reparar que a mulher partira. Somente que as roupas estavam sujas. Tratou de começar a usar o serviço das máquinas de lavar do alojamento. Só era chato porque tinha uma fila enorme.
Por Claudia Nina – [email protected]
Jornalista e escritora, autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)