Benedita sonhava em transformar o sofrimento da infância, como dividir um ovo com os irmãos, em lição para as crianças aprenderem a valorizar a fartura que tinham em suas mesas.
Desde que saiu do Ceará e começou a trabalhar em casas de família no Rio de Janeiro, Benedita gostava de contar as histórias de infância para quem aparecesse diante dela, sobretudo crianças. Em especial, aquelas que faziam birra, não queriam comer, choravam à toa, reclamavam da vida abastada. Ela achava que, se deixasse vazar a penúria dos tempos em que morava no minúsculo povoado perto de Sobral, a história funcionaria como um jogo de passa-anel. A mão que recebesse teria que fazer algo com aquele segredo. Ou seja, a pessoa modificaria sua atitude, tornando-se menos egoísta e mais agradecida à vida. Assim pensava.
Entre as histórias que mais gostava de contar estava a do ovo dividido em quatro partes. “A gente não era triste, só não tinha o que comer”, dizia sempre antes de começar um relato. E, para olhos arregalados diante da fome (coisa que as crianças nas casas de família não tinham a capacidade de entender), ela seguia com o caso preferido – o do ovo cozido, que a mãe dividia em quatro partes. Eram dez os filhos. Impossível ter um ovo inteiro para cada um. A matemática cruel quem fazia era a faca, que metia medo quando a lâmina lascava as micro-fatias.
Benedita contava tudo com seu jeito lacrimejante e orgulhoso, mas não fazia de propósito. Sentia muito orgulho de si mesma por ter conseguido vencer – o que significava ter saído da miséria e arrumado emprego na cidade grande. Desde que se tornou funcionária de carteira assinada, passou a comer um ovo inteiro com arroz. Feijão, não. Detestava, talvez por falta de jeito. Carne também. Faltavam-lhes os dentes.
Sentia muito orgulho de si mesma por ter conseguido vencer.
Quando chegava a Páscoa e os ovos de chocolate gigantes recheavam as mesas, Benedita esmerava-se em contar os detalhes da divisão do ovo cozido – que é para que sirva de lição, pensava, para que as crianças aprendam o valor da fartura.
Ela seguia, de ano em ano, de casa em casa, de criança em criança, com aquele jogo do “anel”. Quem o recebia nas mãos não sabia o que fazer, provavelmente não faria nada. O que Benedita não adivinhava era que, por mais boa vontade que tivesse em fazer circular a história de sua fome, ninguém, de fato, se importava muito.
Um dia chegou a ter a ideia de escrever um livro sobre o ovo da fome para fazer circular a centenas e centenas de pessoas a sua missão de passa-anel. No entanto, além dos dentes, faltava-lhe o alfabeto…
Benedita, que tanto gostava de contar histórias, nunca aprendeu a ler.
Por Claudia Nina – [email protected]
Jornalista e escritora, autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)