Quando se perde o quase nada que se tem, a realidade pode ser moldada à sua necessidade. É o que vemos na história dessa mãe e seus filhos.
Fazer chapéus era para a mãe uma forma de não morrer totalmente, por mais que se cansasse, dia e noite na mesma lida. Ver a produção crescer na esperança de render alguma coisa, ainda que rendesse muito pouco, era um exercício diário de sonhar. Depois que os dedos empedraram, ela passou a delirar cada vez mais. Como não poderiam trançar suas palhas, as mãos imprestáveis acabaram tendo que encontrar outra função.
Inventou o caldeirão do peixe. Colocava a mesa imaginando fartura. No início, todo mundo perguntava cadê o peixe, mãe, a mesa tá vazia. Não estava vazia aos olhos da mãe que encomendara o melhor peixe do mercado. Passara a manhã inteira limpando e temperando no gosto, pedira ajuda de uns e outros para que a família participasse do banquete.
“A mesa era um improviso só…”
Os meninos prestam-se bem para o corte das cebolas, as meninas conhecem o ponto do molho de camarão. Tinha até pimenta das boas para quem aguentasse sem medo das hemorroidas. A mesa era um improviso só. Mas na cabeça da mãe enluarada parecia que estava em uma daquelas mesas enormes e retangulares, como a imagem da Santa Ceia que via na igreja.
Tinha suco de fruta em jarros coloridos espalhados pelas mesas. E não pensem que a fartura não contava com sobremesa. Doces caprichados faziam a sequência do farnel. Comam tudo, mas não se esqueçam de limpar os dentes, açúcar demais faz mal, dizia. Esquecia-se de que a boca de quase todos já tinha apodrecido, havia poucos remanescentes, a banguelice era uma herança quase genética. Quem ousaria desfazer aquela cena?
“Não havia dia especial, nenhum aniversário era comemorado.”
Puseram-se a saborear a comida, fingindo que estavam no mesmo teatro. Temiam uma reação inesperada da mãe que, de repente, poderia entrar em surto – um daqueles piores, que os deixavam ainda mais confusos. Afinal, embora sem eixo, a mãe era o centro do mundo onde estavam enfurnados. Eles ainda precisavam dela, não só para catar-lhes comida, o que aos poucos aprendiam por si mesmos, mas para olhar e dizerem: aquela é nossa mãe.
Era um ritual solene aquele do peixe. Não havia dia especial, nenhum aniversário era comemorado. Apenas a existência dos mínimos seres viventes ao entardecer. A mesa ficava de frente para uma abertura que poderia ser uma janela. A mesma onde Benedita se sentava à procura das naves salvadoras. Quem passasse do lado de fora veria os filhos e a mãe saboreando invisíveis. Alguns paravam para observar e logo pensavam a loucura pega de mãe pra filho, que perigo, é contagioso, todos ali endoidaram de vez, tão comendo ar.
Por Claudia Nina – [email protected]
Jornalista e escritora – autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)
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