Uma pequena família, formada por uma menina rebelde e a mãe desesperada, recebe a ajuda inesperada de uma senhora que parece uma carochinha.
A menina tinha lá seus 10 anos e bem podia ajudar a arrumar a casa depois de fazer a lição do colégio. Só que, em vez disso, colocava tudo abaixo. Bastava uma leve contrariedade para que os maus ânimos a convidassem à destruição. Ela martelava o silêncio com berros. O prédio todo acordava assim que seus olhos se abriam para o dia. A mãe estava exausta e sem recursos – tentara de tudo. Dia após dia, a menina piorava em sua capacidade de desestabilizar o chão e as paredes, que pareciam igualmente desabar assim como as forças da mãe que não encontrava saída para fora do desespero.
No colégio, a menina até que ia bem. O problema era em casa.
A situação chegou a um caos absoluto a ponto de a mãe quase desfalecer na mesa da cozinha. Gritar de igual para igual era a pior escolha. Até porque a mãe não tinha mais força nem na voz. Falira totalmente no embate com a menina rebelde.
Até que um dia.
A menina repetia seus rituais de crueldade matinal. Mal acordava e lançava travesseiros pelo chão, batia as portas do banheiro com tanta força que o lustre tremia. Lá da varanda, a mãe ouvia: ela acordou. Era como se um monstro saísse de dentro de uma caverna. Que triste pensar assim da própria filha…
Neste dia, porém, algo aconteceria para a transformação do cenário. E veio de fora. O que seria?
Quando a menina berrava nem ela sabia por que motivo, entre o café da manhã e o primeiro desapontamento – tinha que se aborrecer pois era seu protocolo matinal – a campainha tocou. A mãe, aturdida, quase não ouviu. Por fim, foi atender.
Quem estava do outro lado da porta era uma pessoa tão pequena que parecia vinda de outro mundo, onde as pessoas eram bem menores. De tão minúscula parecia um insetinho. Mal a mãe abriu, ela começou a falar, porque era pequena só no tamanho, mas tinha uma voz que cobria uma multidão.
A menina foi correndo ver quem era, porque gostava de surpresas e era curiosa com o movimento do mundo. O mundo naquele momento era a mulherzinha na porta.
– Minha filha, por que você grita?
Tanto a mãe quanto a menina ficaram estáticas diante da cena. De onde saíra aquela mulher que ninguém nunca tinha visto no prédio?
– Eu moro muito longe, trabalho aqui todos os dias e preciso pegar um trem e depois um ônibus para chegar. Minha casa é um quartinho. Olha quanta alegria você tem e não enxerga! Não faça mais isso.
Não havia o que dizer.
A imagem da pequena senhora viajando por toda uma eternidade para chegar ao quartinho onde morava instalou-se definitivamente na tela mental da menina, que olhava para a estranha visitante com olhos arregalados.
Como a mulher percebera a reação de inércia de ambas, resolveu finalizar – até porque não tinha tempo sobrando. Precisava trabalhar.
– Agora me dá um abraço e promete que não vai mais berrar desta forma.
A menina desparafusou todas as suas resistências porque no fundo e no raso era uma pessoa boa.
Uma cena do outro mundo: a menina abraçada à estranha que parecia a dona Carochinha – direto do faz de conta.
Depois que ela foi embora, a mãe fechou lentamente a porta. Porque o momento pedia reflexão até nos gestos.
E ficaram as duas, sentadas na mesa da sala, em silêncio.
A partir daquele dia, as coisas começaram a mudar na casa e no coração da menina, que, diariamente, acordava com a imagem da Carochinha atravessando a cidade de trem para chegar ao trabalho e, depois, na volta, para chegar novamente ao seu quartinho-casa.
A verdade costuma vir de dentro. Mas, em alguns momentos, ela vem de fora.
Por Claudia Nina – [email protected]
Jornalista e escritora – autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)