Amor unilateral não vai à frente. Se existem cartas de amor desse tipo, é melhor queimá-las enquanto ainda temos inocência.
Redação | 31 de Março de 2019 às 10:00
Se tivessem sido poucas, umas duas ou três, talvez nem merecessem o destino do fogo. Morreriam esquecidas no fundo das gavetas, teriam uma morte menos dolorida. O problema é que eram dezenas, dezenas de cartas de amor; todas ridículas. Se ela estivesse dentro da história que as cartas contavam, não teria coragem de vê-las em chamas, até porque, no caso, ela também se incendiaria e isso seria um suicídio. Ela estava dentro das cartas, mas unilateralmente – o rapaz, pequeno, branco, de franja – tinha 15 anos e declarava no papel seu amor. Se a menina fosse mais velha, quem sabe, entenderia ou teria pena.
Mas ela só tinha 12 anos e odiava o perfume do menino que vinha junto das cartas – que ridículo, pensava. A lembrança do perfume agravava a situação das cartas que precisavam de um sumiço imediato. E elas chegavam às dezenas, desde que o rapaz se mudou de cidade. Ele achou que eram namorados. Ela nunca soube disso. O dia em que o pai chegou com um pacote das cartas acumuladas na caixa de correio do prédio, entregando a ela, para seu desespero, na frente de todos na família, foi o limite do inaceitável. Aquele dia seria o da fogueira.
O inventário das alegrias possíveis.
Maldades imaginárias na tarde vazia.
Trancou-se no banheiro com as cartas escondidas para que ninguém imaginasse que ela poderia estar romanticamente envolvida no ridículo das cartas – as poucas que conseguiu ler eram todas exageradas; a pior delas terminava com o “te amo profundamento”. Assim mesmo, errado. Ela achou ainda mais tosco aquele erro no meio do exagero – não tinha idade para receber cartas que se diziam de amor, ela não sabia o que era amor e não estava disposta a descobrir. Tinha 12 anos e queria brincar de bambolê.
Antes de se trancar no banheiro foi à cozinha pegar a caixa de fósforo. Entrou munida para seu intento. Tentou ler novamente alguns outros trechos bem pegajosos e ficou com mais raiva ainda, o que foi ótimo: precisava estar irritada para queimar todas e não deixar que nenhuma delas sobrevivesse.
Acendeu o fogaréu.
E viu sumirem uma por uma as inúmeras ridículas cartas de amor.
Só não poderia imaginar que o cheiro de queimado não ficaria preso no banheiro e fugiria pelas frestas – inundou o corredor. Assim que ela saiu do banheiro, crente que estava no segredo, a mãe veio logo perguntando o que a menina estava queimando. Não disse nada, silenciou. Que pensassem o que quisessem.
Tinha resolvido aquela urgência. E por toda a vida ela sempre saberia: quem escrevesse “profundamento” não merecia sua atenção. Nem os exagerados – gostaria dos que amavam de verdade a palavra e sabiam como dizer o que realmente importa.