A experiência de testemunhar a raiva paterna, súbita e inexplicável, marcou a menina como um ponto de partida de uma atitude de suspeita com os homens.
Claudia Nina | 7 de Junho de 2020 às 10:00
A família tinha terminado o ritual do banho depois da praia. Férias de janeiro. A família era: a mãe, a menina e o irmão menor. O pai os deixava em casa e voltava para a praia, o que a menina jamais conseguiu entender – primeiro, por que tinham que ser levados como criancinhas pela mão; segundo, por que voltar? O que ele fazia a tarde inteira na praia sem os filhos em pleno verão? Deixava todos em casa olhando paredes. Um calor medonho, mofavam no sofá depois do almoço que variava entre presuntada em lata, sardinha, macarrão ou tudo isso junto.
Um dia, o pai não voltou manso e satisfeito da praia alongada. Ele trouxe uma raiva que parecia uma pessoa à parte. Entraram, ele e a raiva, como tempestade na sala do pequeno apartamento emprestado da avó. Abriu com força a janela já aberta, como se quisesse rasgar o vidro. Ele urrava com ódio de todos, da casa, do calor, da janela, do sofá, dele mesmo. A menina tomou como ofensa pessoal.
A mãe acuada em silêncio. O irmão acuado em silêncio quase engoliu os carrinhos com os quais brincava. A menina mastigou o ódio do pai e, durante muito tempo, ficou com o sentimento preso na garganta. Porque tanta raiva ninguém jamais conseguiu entender, mas é provável que só a menina tenha custado a esquecer – nunca?
Depois de alguns minutos, do nada, tudo passou. Ele entrou no banho, trocou de roupa, almoçou, como se nada tivesse acontecido. Como se não tivesse rasgado vidros.
De uma coisa, porém, serviu o episódio: a menina aprendeu não só a ter cuidado com os homens, mas a abrir suas próprias janelas para respirar sem o abafamento da presença alheia.