Quando se desiste de viver, às vezes um acontecimento bem pequeno pode servir de inspiração para a vontade de viver voltar.
Claudia Nina | 20 de Setembro de 2020 às 10:30
O velho senhor passou a morar na cama desde que um problema de cabeça o tirou das ruas e de qualquer possibilidade de fingir que nada daquilo tinha acontecido e de que ainda era capaz de articular as palavras com a mesma agilidade de antes. Mal conseguia ver um filme, a cabeça lhe doía tanto que parecia ter percorrido o mundo socando o crânio no chão. Restou-lhe a cama e uma pessoa que lhe trazia as refeições. Era só no mundo. Achou que não precisava fazer família ou filhos, sempre viveu arredio e concentrado em suas tarefas na repartição – as pessoas ou eram chatas ou ignorantes.
Até que um dia o inesperado aconteceu e ele foi obrigado a se despedir do trabalho. A maldita cabeça virou um monstro, uma existência à parte que lhe causava os piores pesadelos. Dormia e acordava a poder de remédios, não sabia mais o que era dia ou noite. Era um esforço absurdo viver e, se dependesse dele, já tinha dado um fim à existência – dele e do monstro. Ocorre que a cuidadora estava sempre por perto.
Ele passou a planejar formas de sumir de si mesmo. Qualquer coisa que viesse depois – ele não acreditava em um depois – talvez fosse menos pior do que aquele estado de vida em que habitantes inescrupulosos viviam dentro da cabeça dele tomando conta completamente da sua mente. Olhava várias vezes no espelho para se certificar de que a cabeça tinha o mesmo tamanho de sempre – parecia gigante, como a de um extraterrestre de filme.
Ele teria conseguido o intento da autodestruição, não fosse a mínima presença de um inseto que, na falta de uma observação mais apurada, talvez fosse uma esperança. Era um esqueletinho verde, frágil, que pousou na janela. Ele, deitado, conseguia vê-lo tentando existir fora dali, pois um pedaço do que poderia ser uma “perna” ou uma “asa” se prendera na janela. O senhor via, da cama, a luta do ser que era praticamente só alma de tão nada. Ficou um bom tempo na tentativa de soltar-se do que lhe prendia e voltar para o ar. O velho não fez nada para ajudar porque estava todo ele cheio de desejo de morte.
Só que – o esqueletinho de alma nem poderia imaginar – aquela grande luta salvou o dia do velho que, inspirado, resolveu tentar buscar também algum ar.
E, mesmo com a cabeça gigante, digladiando monstros, deu o primeiro passo e saiu, cambaleante, segurando nos braços da cuidadora. Era a vida possível.
Quando ele voltou, percebeu que a sensação da cabeça gigante tinha diminuído um pouco, bem pouco, mas já era um pequeno alívio. Se ele desse todo os dias um passeio, talvez o peso do monstro que carregava dentro dele diminuísse… Será?
Sentiu-se levemente animado. Por um momento, percebeu que tinha um fiapo de vontade de viver, ainda que quase nada do que ele foi tivesse lhe sobrado. Surpreendeu-se com aquela mínima luta – há quanto tempo já tinha perdido a esperança.
Quem sabe um dia viraria um esqueletinho-alma pronto para voar…
Esta breve história faz referência à campanha Setembro Amarelo. Sempre podemos ajudar alguém de alguma forma a diminuir o peso da tristeza. Quem não tem por perto um amigo ou parente com a cabeça cheia de monstros?