A menina de 8 anos aceita a carona de um desconhecido para a escola. Mas diante do perigo iminente, ela lança mão de sua única arma: as palavras.
Claudia Nina | 16 de Agosto de 2020 às 10:08
A menina não suspeitava que correria perigo de vida caso aceitasse a carona e entrasse naquele carro branco que todas as manhãs cruzava seu caminho, rodas lentas, só para acompanhar o passo dela. Era ainda roliça em seus oito anos, as pernas não tinham muito joelho, a barriga e as bochechas não adivinhavam que sumiriam ao longo dos anos e dariam forma a uma moça tão alta como uma estante. Isto é, se ela sobrevivesse ao perigo.
O homem do carro branco, como se cavalgasse um desfile insistente, fazia sempre o mesmo ritual, perguntando à menina se ela queria carona para a escola. Ela negava, era um estranho. O homem não desistia.
– Ei, quer carona?
Até que um dia a menina, talvez por curiosidade diante da insistência ou por pura preguiça de seguir a pé o caminho cansado, entrou no carro, aceitou a carona e o trote daquele homem que conduzia o cavalo maquinal e repetitivo.
Assim que ela entrou e fechou a porta, o homem pôs a mão imensa e vermelha na perna dela. A menina estremeceu e teve nojo profundo das unhas pequenas e pontiagudas que nasciam daquela mão. As unhas disseram:
– Menina, como você é bobinha. Onde já se viu entrar no carro de um estranho?
Depois de dois segundos de pânico, a melhor resposta veio como uma arma, um canivete, para cortar as unhas e até as mãos do indecente.
– Mas você não é um estranho. Já falei sobre você e seu carro para muita gente!
As unhas também não teriam serventia naquele momento – que o homem tratasse de as recolher. A cara de vencedor, garanhão, dentro do seu cavalo branco, perdeu o sentido. Ele secou a fala e seguiu para a escola, sem nenhuma parada, nenhuma piada. Silêncio.
Como a menina sabia que estava na direção da escola, respirou aliviada tão logo viu os primeiros colegas surgirem ao redor. Quando chegaram, ele passou a mão por trás da menina e abriu a porta do carro. Assim que ela fincou os dois pés na calçada, liberta da ameaça, pode ouvi-lo reclamar:
– Mais gorda do eu que pensava, uma gorda faladeira!
A menina de pernas redondas, com joelhos que se batiam quando andava, sentiu uma força incrível. Tinha vencido com o poder do próprio corpo e também com a palavra-punhal, que enjaulou a besta na sua jaula mesmo.
A menina roliça ensinaria muitas outras coisas à mulher…
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Semana passada, propus um desafio no meu Instagram (claudianina_writer): me escrevam uma história real em dois parágrafos para eu transformá-la em uma “história que a vida conta”. A primeira a responder foi a querida Cris Lírica, que me emprestou o seu relato. É claro que, como toda ficção, colher do mágico, entortei os fatos. A brincadeira vale como exercício divertido para quem está começando na palavra literária. Valeu, Cris!