Do acidente de automóvel quando ainda era muito pequena, restaram flashes herdados da memória alheia e a certeza da segurança do colo da mãe.
Claudia Nina | 24 de Janeiro de 2021 às 10:00
Devia ter entre 3 e 4 anos, e a lembrança do acontecido lhe veio como herança da memória dos outros. Ela mesma não era capaz de se lembrar. Estavam a menina e os pais na estrada, o pai no volante, iam para algum lugar que a memória alheia transmitiu, mas ficou pelo caminho, ninguém se lembrou de guardar depois. De qualquer forma, não tem importância o destino. A história acontece muito antes da chegada.
Estavam a caminho de algum lugar, sol forte, o carro pequeno, férias de verão. A menina viajava no colo da mãe, naquela época era comum, não tinha cadeirinhas, o uso de cinto não era obrigatório – uma realidade impensável. Talvez porque se acreditasse que os colos eram a maior proteção que o mundo poderia oferecer.
A viagem parecia tranquila até que uma pedra vinda de Marte caiu sobre o vidro da frente do Fusca. Houve um estrondo e um estilhaço monumental – uma chuva de vidro por todos os lados do carro. Ninguém se feriu. Milagre das estradas.
Como seguir?
Por algum motivo, não tinham como parar – estariam em um deserto? A memória alheia igualmente não guardou a informação acerca do motivo de não pararem no acostamento para pedirem ajuda. Seguiram.
Mas como?
Limparam os cacos dos bancos e só. Havia pequenos cacos nas laterais da frente, mas o centro estava vazio. Os cacos tinham caído para dentro do carro e não sobrou vidro sobre vidro – havia os pequenos cacos nas laterais que poderiam se soltar facilmente…
Mas a viagem seguiu com um acréscimo de segurança: a mãe lhe emprestou os óculos de sol e, como ficaram grandes no rosto da pequena, ela teve que ficar segurando as hastes pelo resto da viagem.
Talvez a menina se lembrasse por memória própria daquela imagem. Só era difícil saber se era uma imagem fabricada dentro dela ou era memória alheia. De uma coisa ela teria certeza: era uma história real, que apenas muito tempo depois ela soube interpretar.
Quando o mundo-carro-estrada-vidro se estilhaça sobre nós, os olhos da mãe são a possibilidade de ver a chegada-partida-travessia em segurança…
A menina, o passarinho e o despertador na varanda
O homem eternamente deitado na varanda
O erro fatal de um encontro quase às cegas
A queda solitária na festa para dançar
O naufrágio em plena terra (firme?)
Quando cortar a cabeça é preciso