Um acidente na rua de uma cidade estrangeira deixa o corpo e a alma machucados. Anos depois, a autora se dá conta de que ainda guarda a memória do corpo.
No meio da noite, ela acordou com muita dor no punho direito. Conhecia aquela dor, que pertencia a um passado distante que ela imaginou ter esquecido. Mas o corpo trai a mente às vezes. Era uma dor latejante. Teve medo. Sabia que o passado estava de volta a partir da memória de um pedaço de seu corpo.
Não teve como impedir. Lá estava novamente em uma espécie de outra vida dentro da mesma vida. Uma tristeza sem fim, em um dia frio de sol. A rua de poucas pessoas, como sempre, ela sozinha na vastidão. Atravessava uma das ruas entrecortadas pelos canais de Amsterdã, quando de repente uma bicicleta vinda do nada a derrubou no chão. A moça que guiava o veículo era a dona da rua – ou assim pensava – e passou como quem esmaga.
Ela, estrangeira, era uma invasora. Saia daqui, parecia gritar a bicicleta.
Pelo menos foi isto o que ela pensou quando se viu lá estirada no chão, com o pulso aberto, sem que ninguém aparecesse para lhe perguntar se estava bem ou se precisava de ajuda. Conseguiu depois de quase uma hora se levantar e chegar em casa. Demorou a ter coragem de buscar um hospital. Nenhum lugar naquele país lhe pertencia. Não conseguia ocupar espaços. Nem mesmo a rua, nem mesmo o chão.
O fato é que, durante anos, ela continuou sentindo muita dor no punho machucado no atropelamento. Qualquer sinal de chuva ou algum esforço maior fazia com que a dor piorasse. Mas o tempo passou. Novos ciclos vieram. Ela realmente pensou que já havia nascido outra vez.
Até aquela noite. Quando a dor surgiu de novo e, com ela, o passado.
Sim, o corpo tem uma memória própria, alheia às nossas vontades.