Nessa história de inspiração, o presente se sobrepõe ao passado. E ele pode ser tão forte que nos puxa e nos prende como um ímã...
Era uma manhã chuvosa de agosto. Muitos não tinham nada mais estimulante a fazer além de tirar sangue ou colocar em dia seus exames anuais. A senhora nascera em 1930, e gostava de repetir isso a quem tivesse ouvidos de ouvir. Postava com firmeza a bengala branca combinando com os óculos escuros de hastes brancas. Por trás deles, olhos muito vivos, mais vivos que ela, brilhavam atrás das lentes.
Todos viam o laboratório, as mesas dos atendentes, os computadores, a bancada para as senhas, a escadaria que dava para as salas dos exames. A senhora não. Ela olhava e via a sala grande do piano de cauda, o canto onde ficava o móvel de estimação da mãe, lá em cima os quartos, o dela o maior, a única menina em uma família de cinco filhos. O casarão bem ali na esquina, antes de ser laboratório, fora seu primeiro endereço.
De volta ao passado
“Entro aqui com muita dor”, dizia ela de repente, quando, entre uma lembrança e outra, percebia que a antiga morada não existia mais. Eram lapsos de percepção, pois, a maior parte do tempo, quando entrava ali, era imediatamente lançada para o passado da infância e, com dificuldade, custava a avançar nas casas do tempo e postar-se de novo em uma das cadeiras enfileiradas para ser atendida. Hora do exame, chamaram a senha 94.
Falava inglês alternando ao português, tinha tido uma educação bilíngue. Tudo era confuso então, não sabia a quem nem a que lugar pertencia, embora tivesse lucidez para dizer nome, idade e origem. Não estava alterada em seu comando de memória. Apenas as portas do tempo oscilavam e ela permitia que oscilassem – era ao comando dela que a antiga mansão se sobrepunha e, mais uma vez, estava sentada à grande mesa da sala. Como era linda a louça onde serviam a sopa.
A verdade necessária
Levantou-se e foi para a mesa – a outra, a mesa da atendente. Repetiu a história, era preciso que todos soubessem a verdade: aquele laboratório abrigou um casarão, um dos muitos da rua, de dois andares. Aquele canto era onde ficava o piano de cauda…
Quando ela pudesse novamente ouvir o que o piano tocava talvez fosse hora de partir. Mas, por enquanto, as lembranças ainda se confundiam. O passado a chamaria de vez na hora certa. Por enquanto, era apenas chegada a hora do exame.
– A senhora pode subir. É lá em cima, à direita. Vão chamar pelo nome.
Sim, vão chamar pelo nome.
Por Claudia Nina – [email protected]
Jornalista e escritora – autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)
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