Acompanhe uma viagem pelas sidrerías bascas, onde a sidra é parte da cultura e muito mais do que uma bebida alcoólica.
Acompanhe uma viagem pelas sidrerías bascas, onde a sidra é parte da cultura da população:
Ninguém nos diz o que fazer quando entramos pela primeira vez numa sagardotegi, ou sidrería basca.
Apenas nos dão um copo, nos levam a uma das mesas compridas do salão e nos servem um prato com linguiça seguido por uma omelete de bacalhau. Cabe a você descobrir como conseguir a bebida.
Meu irmão Tyler e eu descobrimos isso em nossa primeira noite em Astigarraga, na Espanha, a capital da sidra no País Basco, oito quilômetros a sudeste de San Sebastián. Nessa cidade de pouco mais de 6 mil habitantes, há um total de 16 sidrerías. No fim de janeiro, início da tradicional temporada da sidra, que vai até meados de maio, passamos vários dias lá. Com a sidra de estilo espanhol é a mais popular entre os entusiastas, quis ver como ela era na fonte.
Em Gartziategi, uma sagardotegi num grande celeiro de pedra nos arredores da cidade, percebemos que, quando um sujeito com um balde grita “Txotx!” (pronuncia-se “thótch”), é sinal de que está prestes a abrir a torneira de um dos imensos barris de 13 mil litros, deixando sair uma fina torrente de sidra. É preciso se levantar, entrar na fila e erguer o copo no ângulo certo para recolher alguns dedos. Você bebe o pouquinho que há no copo e depois segue o sidreiro até o próximo barril.
Achei que era tudo à vontade, e minha primeira gafe foi me aproximar da sidra pelo lado errado e, basicamente, furar a fila. Depois, não consegui entender como segurar o copo para a sidra cair no ângulo certo para “quebrar” o líquido e criar bolhas. Ainda bem que os frequentadores da sidrería basca foram muito tolerantes. Um homem gentil de suéter e cabeça branca, cujo grupo comia ao nosso lado, me mostrou como agir, levantando-se e me levando com ele no próximo grito de “Txotx!”
Finalmente aprendemos, em nossa visita à sidrería, que bastava procurar orientação para achá-la.
Numa sidrería moderna chamada Zapiain, no centro da cidade, havia um mural pintado à mão com o que não fazer. Não fure a fila; não encha o copo; não se sente nos barris.
Tyler aprendeu a técnica bem mais depressa do que eu. “Ei, pegue aqui, em ângulo”, me mostrou Igór, nosso guia na Petritegi, outra sagardotegi perto de Gartziategi (o sufixo tegi significa “lugar de”). Fiz o que Igór disse, deixando a torrente atingir a beirinha do copo, borrifando um pouquinho no chão, como fazem os habitantes locais. (Peguei o jeito no quarto copo.) Algumas sagardotegi mais antigas têm até sulcos formados no piso de cimento por anos de sidra derramada.
Sala de refeições da Zapiain, com visão dos barris e da área de degustação.
A questão, disse Igór, era assegurar que a sidra tivesse boas txinparta, ou bolhas; quando a sidra é saudável, elas se dissipam depressa. A sidra no copo também some depressa. Os sabores são terrosos, frescos e ácidos, geralmente sequíssimos.
No fim de janeiro, Astigarraga ainda estava relativamente tranquila. Com a temporada do txotx, porém, mais de 15 mil fãs por semana podem se amontoar nas sidrerías da cidade. A temporada do txotx vem depois da colheita da maçã, em setembro e outubro, e da fermentação da sidra no início do inverno. Na verdade, em fins de janeiro alguns barris talvez não tenham acabado de fermentar.
“No barril, a sidra ainda está evoluindo”, explicou Igór. “Se você voltar daqui a dois meses e provar do mesmo barril, a bebida terá mudado.”
No País Basco, a maioria das sidras é feita com fermentação espontânea, sem acrescentar leveduras comerciais.
Quando a temporada termina em meados de maio, o que resta no barril é engarrafado. O ritual anual remonta a uma época em que os sidreiros convidavam os clientes, talvez donos de estalagens e restaurantes ou as famosas sociedades gastronômicas de San Sebastián, a degustar e escolher os barris que queriam comprar. “Aqui, a sidra não é só uma bebida alcoólica”, conta Igór. “É um estilo de vida.” A Petritegi, por exemplo, data de 1526.
Com o passar dos anos, uma refeição tornou-se fazer parte do ritual. Toda sidrería serve o mesmo cardápio básico por cerca de 30 euros: linguiça, omelete de bacalhau, bacalhau frito com pimentão verde, uma bisteca ao ponto e queijo basco (como Idiazabal), servido com nozes e marmelada. E toda a sidra que você conseguir beber. O ritual das sidrerías é apenas uma das muitas tônicas culturais do País Basco que fazem dessa comunidade autônoma um lugar muito diferente do restante da Espanha.
“Vinte anos atrás não havia cadeiras”, disse Igór. “A comida era simplesmente servida no meio da mesa.” Embora a Petritegi de fato tivesse cadeiras – e uma linda merluza ao alho e óleo como alternativa ao bacalhau –, praticamente o mesmo cardápio foi servido em todas as sete sidrerías que visitamos, e em três delas comemos em pé.
Em Astigarraga, fizemos um passeio adorável, íngreme e cansativo até uma antiga igreja que já foi parada da peregrinação do Caminho de Santiago.
Enquanto perambulávamos por pomares que davam para a baía de San Sebastián, nossa guia, Ainize, nos contou histórias da idade do ouro basca. No século 16, os navios bascos eram construídos em torno dos barris de sidra, e nas longas viagens cada marinheiro tomava até três litros de sidra por dia para evitar o escorbuto.
Segundo a lenda, o resultado foi que os pescadores bascos eram os mais saudáveis e pescavam até no Canadá. A amplitude de suas viagens era tão famosa que faz apenas dois anos que os remotos Fiordes Ocidentais da Islândia revogaram uma lei de 400 anos que condenava à morte qualquer visitante basco.
“O século 16 foi a idade do ouro da sidra, mas sua fabricação é muito mais antiga”, disse Ainize. “Em nossa língua, txotx significa ‘palito’.” Antes que houvesse torneiras para servir a sidra diretamente dos barris, abriam-se furos que eram fechados com gordura animal. O palito era usado para abrir o barril.
Quando descemos de volta à praça da cidade, Ainize mostrou a quadra local de pelota basca, onde acontece um jogo de bola tradicional. Muitos acreditam que esse esporte se baseia num jogo dos antigos gregos. Também vimos pedras imensas com alças, erguidas e carregadas em outro esporte basco. No dia anterior, tínhamos bebido sidra com uma mulher chamada Olatz, que nos contou: “Com oito mulheres, carrego uma pedra de 550 quilos.” Ela acrescentou, com um sorriso: “Temos nossos próprios esportes aqui.”
Na Petritegi, Igór nos levou pelos pomares, onde conhecemos variedades bascas de maçã, como Goikoetxe, Moko, Txalaka, Gezamina e Urtebi.
A sidra basca pode ser feita com mais de 100 variedades, algumas amargas, algumas ácidas, algumas doces. E numa única sidra pode haver uma mistura de 40 a 50 delas. Dizem que um quilo de maçãs faz uma garrafa de sidra. Muitos também dizem que, às vezes, trazem maçãs de caminhão até da República Tcheca para atender à demanda.
No centro da cidade, a Sidrería Bereziartua tem uma sala de degustação, e marcamos uma visita. “A sidra é profunda em nossa cultura”, revela Mikel, que nos serviu. “Nem sabemos quando começamos a fazê-la.” As sidras que usam a denominação de origem oficial Euskal Sagardoa, criada em 2016, têm de ser feitas só com maçãs bascas.
Quando serviu a Euskal Sagardoa da Bereziartua, Mikel disse: “Se quiser levar só uma garrafa, prove esta”. Depois ele serviu outra Bereziartua, produzida com maçãs estrangeiras na mistura. “Se quiser beber três garrafas, leve esta”, disse ele. As garrafas das sidrerías do País Basco são relativamente baratas. Não vi nenhuma que custasse mais de 10 euros, e a maioria ficava abaixo dos 5 euros.
Em nossa última noite, fomos a Lizeaga, uma sagardotegi numa casa de fazenda do século 16.
Antes, Olatz, nossa amiga carregadora de pedras, descreveu a casa como “o verdadeiro txotx”.
Nossa reserva numa das longas mesas estava marcada com uma baguete comprida. Não havia cadeiras. Depois do prato inicial de linguiça, fomos para a sala dos barris. Gabriel, o sidreiro, abria as antigas torneiras com uma ferramenta que lembrava um alicate. Ele ia de barril em barril, e fomos atrás, correndo de volta ao salão de refeições para a omelete, o bacalhau, o bife.
Passado o oitavo ou nono txotx e depois de alguma discussão sobre a técnica com meu irmão, achei que tinha finalmente conseguido me servir como um basco de verdade. Mas, no txotx seguinte, quando pus meu copo sob a torrente, Gabriel me corrigiu gentilmente: “Não, não”, disse, “faça a sidra bater aqui”. Bom, não importa. Logo ele abriu outro barril, e tive mais uma oportunidade de aprender.
A sala de refeições da sidrería Lizeaga
DICAS DE VIAGEM
O MUSEU DA SIDRA
Sagardoaren Lurraldea, Kale Nagusia, 48, Astigarraga.
Oferece degustação e caminhadas e ajuda a fazer reservas nas sidrerias locais.
COMER E BEBER
Algumas sidrerias de Astigarraga para visitar na temporada do txotx (recomenda-se fazer reserva):
- Zapiain, Kale Nagusia 96
- Garziategi, Martutene Pasealekua 139
- Lizeaga, Paseo de Martutene 139
- Petritegi, Petritegi Bidea. Funciona durante todo o ano.
- Zelaia, Martindegi, Hernani. Vinte minutos a pé de Astigarraga.
HOSPEDAGEM
- Pensión Txingurri, Donostia Ibilbidea 90, Astigarraga
- Sagarlore Hotel, Petritegi Bidea, Astigarraga
Sagardoaren Lurraldea, o museu da sidra (em primeiro plano), oferece degustação e ajuda a fazer reservas nas sidrerías.
Por JASON WILSON do THE NEW YORK TIMES