Fique por dentro do plano da Nova Zelândia para salvar o estranho e simbólico quivi, um filhotinho fofo de cada vez.
Redação | 1 de Novembro de 2020 às 01:02
Ela já devia ter encontrado o filhote. Com o braço direito no fundo da toca, faz alguns minutos que Bridget Palmer está tateando. Seu colega John Black, as botas de caminhada enterradas na encosta do morro para não escorregar na lama, também vasculhou a toca, mas nada encontrou. Os dois, voluntários do Whakatāne Kiwi Trust – Fundo dos Quivis de Whakatāne, da Ilha do Norte da Nova Zelândia –, estão entre as únicas seis pessoas da entidade treinadas para lidar com quivis vivos. Mas, como Bridget está prestes a descobrir nessa manhã nublada de novembro de 2018, não há nada para eles ali.
Guarda-florestal do Departamento de Conservação da Nova Zelândia (DOC), Bridget Palmer, de 44 anos, tira torrões de folhas úmidas do ninho localizado na Reserva Paisagística Ōhope. Ela procura cascas de ovo, sinal de que o filhote nasceu. Logo, acha um bico, penas. Mas não há razão para alegria; Bridget segura o cadáver de um filhote, achatado num maço de folhas.
“Morreu ao sair do ovo”, murmura.
Bridget enterra o filhote. Depois de cerca de 85 dias de incubação, ele ficou exausto, preso ao tentar quebrar a casca e sair do ovo, processo que pode levar de três a cinco dias. O filhote sufocou antes de se libertar. O irmão Kikorangi, nascido duas semanas antes, e o pai Pea, equipado com transmissor, fugiram do ninho, provavelmente por causa do cheiro. Ainda assim, Bridget espera que Pea volte a usar essa toca. (A fêmea do quivi castanho da Ilha do Norte põe os ovos, mas é o macho que passa três meses chocando.) Com meio metro de profundidade sob robustas raízes de árvore, é um bom ninho.
Ōhope é uma das maiores florestas de pōhutukawa – a árvore-de-fogo, de folhas perenes e copa em forma de cúpula, que já foi usada para construir navios e é chamada de “árvore de Natal” por causa das flores rubras – que restam no país. A reserva também é rica em aves, como o tūī, um passarinho que se alimenta de mel, escuro e com tufos brancos no pescoço; o melodioso korimako, também chamado de passarinho-sino; e o pōwakawaka, que abre a cauda em forma de leque para mudar de direção. Os neozelandeses se orgulham de seus pássaros, mas amam principalmente o quivi. “O filhote parece uma bola de tênis grande e peluda”, diz Bridget. Black o descreve como “uma trouxinha de fofura com patas”. O quivi é o emblema mais famoso do país; nem os hobbits conseguiram destroná-lo. No entanto, ele enfrenta dificuldades.
A taxa de extinção de aves na Nova Zelândia é alta. De acordo com o DOC, 34% das aves terrestres e aquáticas endêmicas e 5% das aves marinhas já se perderam. Hoje, considera-se que mais de um terço das espécies de pássaros está ameaçado, a um passo do risco de extinção. Entre elas está o quivi castanho da Ilha do Norte, do tamanho de uma galinha, o mais comum dos cinco quivis identificados e o que vive mais perto dos seres humanos, principalmente nas planícies costeiras. Seus primos, o rowi (o mais raro, que vive principalmente no santuário de quivis de Okarito, na Ilha do Sul), o tokoeka (também chamado de castanho do sul e parecido com o parente do norte), o grande quivi malhado (grande e estridente, prefere as montanhas) e o pequeno quivi malhado (cinza e pintado, do tamanho de uma galinha garnisé).
Todos têm penas finas como pelos, bigodes de gato para se orientar no escuro e um olfato apuradíssimo, graças ao bico comprido e sensível com narinas na ponta. E, embora consigam correr depressa, os quivis, que não voam, não têm nada de furtivos: seus passos soam quase humanos quando caminham pelo mato. Essas criaturas adoráveis, esquisitas e desajeitadas são a coisa mais próxima que a Nova Zelândia, sem mamíferos terrestres nativos além dos morcegos, tem de um mascote fofo. No total, restam menos de 70 mil deles.
Muitos animais emplumados do país evoluíram para viver em terra; seus predadores vinham do céu, como a imensa águia-de-haast, hoje extinta. Sem o dom do voo, as aves terrestres como o quivi ficam sem defesa contra o ataque de animais que vivem na terra. Isso só foi problema quando os baleeiros, caçadores de focas e mercadores europeus começaram a parar ali no fim do século 18, cerca de 500 anos depois de os maoris chegarem da Polinésia. Com os europeus vieram os roedores e o inimigo n° 1 do quivi, o arminho, que lembra um furão e foi levado para lá no fim do século 19 a fim de controlar a população de coelhos, nova mas já em explosão.
Das cinco espécies de quivi, os castanhos da Ilha do Norte estão desaparecendo mais depressa, por causa principalmente do desmatamento. Acrescente-se a isso arminhos, atropelamentos, ataques de cães e gatos, armadilhas para gambás e o fato de que quase um terço dos ovos é infértil ou os filhotes não nascem. Dos que nascem, só cinco em cada 100 filhotes sobrevivem até pesar um quilo e conseguir se proteger dos arminhos. (O quivi castanho da Ilha do Norte cresce até 40 centímetros e pesa entre 2 quilos e 2,5 quilos.) Sem proteção, a população sofreria um declínio anual de 2% e, em 50 anos, o castanho da Ilha do Norte desapareceria.
É por isso que Bridget, Black e um grupo de 130 voluntários trabalham mais de 5 mil horas por ano para salvar quivis. Criado em 2006, o Whakatane Kiwi Trust monitora as aves para pesquisá-las, ajuda o DOC com o controle de predadores e divulga informações em esco- las e para o público em geral. Black, programador de computador de 54 anos, chegou a criar um aplicativo que permite aos voluntários registrar tudo o que tenha a ver com quivis, desde horários e armadilhas até o rastreio e o mapeamento, e que foi considerado modelo para um banco de dados nacional.
Quando avaliou Ōhope em 1999, o DOC contou somente quatro casais de quivis. Treze anos depois da criação do fundo havia mais de 300 aves no total, graças, em parte, à remoção de mais de 13 mil predadores, inclusive mais de 1.000 arminhos e mais de 300 doninhas.
Os armadilheiros e rastreadores do grupo, porém, enfrentam um inimigo de pensamento rápido e que se multiplica depressa. De julho de 2017 a julho de 2018, nem um naco de coelho salgado fez uma família de arminhos se aproximar da armadilha; a fêmea ensinou os filhotes a evitar a armadilha e a isca e a matar filhotes de quivi. Os quatro filhotes de Pea daquele ano morreram, e essa é uma das razões para os voluntários investirem ainda mais na nova ninhada.
Faz tempo que Pea é um dos favoritos de Bridget; ela deu à ave o apelido de sua mãe e agora o patrocina, pagando 335 dólares por ano para custear o transmissor, cuja bateria tem vida de 12 meses. Com 22 machos adultos e 16 filhotes para rastrear todo ano em três reservas, o fundo atrai patrocinadores com a promessa de tempo ao vivo com as aves em seu hábitat natural. (A maioria dos neozelandeses nunca viu o animal nacional, que é noturno.) Pea também é uma celebridade nacional, o primeiro filhote a nascer e crescer em ambiente selvagem como parte do Projeto Quivi Whakatāne.
Antes de 2011, quando Pea nasceu, o fundo trabalhava com a Operation Nest Egg (operação ovo do ninho, ONE), iniciativa que envolvia o DOC, grupos comunitários conservacionistas, maoris, pesquisadores e instalações de criação. Na ONE, os ovos e filhotes de quivi são removidos das tocas e criados em cativeiro até pesarem pelo menos um quilo, pois a probabilidade de sobreviver a ataques de arminhos antes desse tamanho é zero. São uns seis meses até serem devolvidos ao antigo território.
Depois de anos usando os serviços da ONE, o Projeto Quivi Whakatāne quis ajudar as aves no local, monitorando os filhotes desde que saem do ovo. Algumas temporadas têm mais sucesso do que outras. Bridget Palmer está desapontada com a segunda ninhada fracassada de Pea, mas isso é melhor do que serem mortos por arminhos. “Para mim, é a Mãe Natureza seguindo seu curso”, comenta ela.
O Parque Natural Rainbow Springs pode ser um espaço de trabalho diferente daquele do fundo, mas a meta é a mesma: preservar o quivi. Na cidade de Rotorua, a uma hora e 15 minutos de carro do Whakatāne, que fica no litoral, ele abriga a Criação Nacional de Quivis Aotearoa, a maior de seu tipo no mundo. Emma Bean, de 38 anos, é a gerente de criação de quivis. Ela e os sete integrantes da equipe cuidam e libertam em média 130 filhotes por ano; a taxa de filhotes nascidos vivos é de 95%.
Ela sabe que o sucesso é meio artificial, mas até que o hábitat do quivi esteja livre dos predadores introduzidos, os seres humanos precisam intervir. “Caso cheguem ovos às três da madrugada, estamos todos prontos para vir para cá”, diz ela, acrescentando que, cinco dias depois de nascer, os filhotes sabem procurar insetos com o bico comprido e estão prontos para perambular. Em geral, os quivis castanhos deixam o ninho paterno em uma semana, enquanto outras espécies tendem a ficar lá um pouco mais.
Embora trabalhe no criadouro há mais de uma década, Emma continua fascinada pelos seus pupilos. “Os quivis têm importância biológica”, informa ela. Eles têm dois ovários, e não um só, como a maioria das aves. A sua temperatura é mais próxima da temperatura humana: 38°C em vez de 40°C ou 42°C. Seus ossos não são ocos e contêm medula. E podem viver até os 50 anos ou mais.
O quivi também tem um grito típico, agudo para o macho, rascante para a fêmea. É dado depois do pôr do sol e repetido de 10 a 25 vezes. “Há alguns anos, um filhote saiu do ovo e, ainda úmido, soltou um grito enorme, seguido por outros nove”, conta Emma. “A maioria dos quivis fica abalada com o esforço de sair do ovo. Mas aquele pequenino gritava: ‘Estou aqui. Sim, preciso de ajuda, mas não estou extinto. Ouçam meu canto.’”
Zealandia é um ecossantuário em Wellington, capital do país, sua meta é, em 500 anos, restaurar a floresta e os ecossistemas de água doce do vale ao estado anterior ao contato humano. A apenas 2 quilômetros do centro da cidade, o projeto de conservação, com 225 hectares, abriga mais de 20 espécies de animais reintroduzidas no vale desde a inauguração de Zealandia, em 1999. Algumas, como o tuatara, réptil que lembra um lagarto mas cujo parente mais próximo é um animal que existia na época dos dinossauros, ficaram mais de um século extintas nas ilhas do Norte e do Sul. (Populações pequenas sobreviveram nas ilhas mais distantes.) Graças à Zealandia, Wellington é uma das poucas cidades do mundo onde a diversidade de espécies de aves nativas está aumentando, e não diminuindo.
Ali, no decorrer de uma noite, é possível ver um trio de tuataras, wētās gigantes do Estreito de Cook (insetos vegetarianos que lembram grilos, do tamanho de um rato-do-deserto), larvas luminosas que cobrem superfícies rochosas e qualquer um dos 40 pássaros nativos, tudo atrás de uma cerca de 8,6 quilômetros que mantém do lado de fora os mamíferos predadores. Mas nada causa mais alvoroço, em termos literais e figurativos, do que o pequeno quivi malhado com seus passos pesados, que faz um grupo de visitantes munidos de lanternas sair correndo atrás dele pelo mato.
Bridget palmer e John Black pegam a caminhonete e vão para o outro lado dos 490 hectares da reserva de Ōhope. Lá, descem, pulam uma vala cheia de lama e entram na floresta. Vão para o ninho de Pouraiti, um dos dois pupilos de Black. Além de patrocinar a ave, Black passou a maior parte de várias noites tentando interceptar esse filhote. O rastreamento é um jogo de sorte e paciência. “Preferimos esperar até papai sair”, diz Bridget. “Se pusermos a mão lá durante o dia, corremos o risco de ele abandonar o segundo ovo.”
Graças a um transmissor na pata de Pouraiti, Black e Bridget sabem quanto tempo ele fica dentro e fora do ninho quando o ovo está perto de se abrir, se é que ainda não se abriu. Combinado ao exame de cinco dias antes – um tipo de ultrassonografia feita passando uma lanterna pelo alto da casca –, isso reduz o risco da busca. Eles vão entrar.
Bridget e Black sorriem um para o outro; ficam aliviados ao encontrar um filhote fofo de um dia, em vez de reviver a tristeza que sentiram no ninho de Pea. Black ergue a borda da manga da jaqueta para que o guinchante recém-nascido mergulhe na escuridão. Enquanto Black segura com força as garras já assustadoras da ave, Bridget zomba dele por perder o rastro do primeiro filhote, ainda pequeno demais para usar transmissor. “Você sabe como são as crianças”, responde Black. “Vivem saindo sem dizer aonde vão.”
Por enquanto, pelo menos, eles sabem que o segundo filhote está vivo. E voltarão para dar nome e estudar o pequeno – e conseguir novas histórias que inspirem outros a proteger o símbolo tenaz da Nova Zelândia.