O grande roubo de terras da Europa

No tempo do comunismo, os agricultores do condado de Fejér, a oeste de Budapeste, colhiam trigo e milho para um governo que tinha lhes tomado a terra.

Redação | 1 de Maio de 2020 às 01:01

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No tempo do comunismo, os agricultores do condado de Fejér, a oeste de Budapeste, colhiam trigo e milho para um governo que tinha lhes tomado a terra.

Hoje, seus filhos labutam para novos senhores: um grupo de oligarcas e chefes políticos que anexaram a terra por meio de negócios obscuros com o governo húngaro. Criou-se uma versão moderna do sistema feudal, que dá emprego e auxílio aos que obedecem e castiga os rebelados.

Na verdade, esses barões da terra são financiados e incentivados pela União Europeia.

Todo ano, o bloco de 27 países paga 59 milhões de euros em subsídios agrícolas com a intenção de ajudar agricultores de todo o continente e manter vivas as comunidades rurais. Mas, na Hungria e em boa parte da Europa Central e Oriental, o grosso do dinheiro vai para alguns poucos poderosos com boas conexões.

Isso porque os governos da Europa Central e Oriental, vários deles encabeçados por populistas, têm muita liberalidade na hora de distribuir os subsídios, financiados por contribuintes da Europa inteira.

Uma investigação do New York Times, realizada em nove países, revelou um sistema de subsídios propositalmente obscuro que prejudica as metas ambientais da União Europeia e é distorcido pela corrupção e pelo nepotismo.

A maquinaria da Europa em Bruxelas permite essa corrupção mal-ajambrada porque enfrentá-la significaria mudar um programa que ajuda a segurar uma união precária. Os líderes europeus discordam em muitas questões, mas todos contam com subsídios generosos e ampla liberdade para gastá-los. Opor-se a esse sistema e controlar os abusos nos estados-membros mais novos atrapalharia os destinos políticos e econômicos de todo o continente.

Por isso, em vez de erradicar a corrupção ou aumentar o controle, os legisladores estão dando aos líderes nacionais mais autoridade para gastar o dinheiro, apesar das objeções dos auditores internos.

O programa é o maior item do orçamento central da União Europeia, responsável por 40% das despesas. Mas alguns legisladores em Bruxelas que redigem e aprovam a política agrícola admitem que, com frequência, não fazem ideia de para onde vai o dinheiro.

Um de seus destinos é o condado de Fejér, lar do primeiro-ministro populista húngaro Viktor Orbán. Duro crítico das elites europeias e de Bruxelas, ele aceita com prazer o dinheiro da União Europeia.

O governo de Orbán leiloou milhares de hectares de terra estatal entre os membros de sua família e pessoas próximas. Os que controlam a terra, por sua vez, se qualificam para receber milhões em subsídios da União Europeia. “É um sistema absolutamente corrupto”, disse József Ángyán, que já foi secretário de Orbán no Ministério de Desenvolvimento Rural.

Os agricultores que criticam o governo ou o sistema clientelista dizem que lhes negaram créditos ou que enfrentaram auditorias de surpresa e inspeções ambientais incomuns, numa sofisticada campanha de intimidação. “É diferente de quando um carro aparece à noite e leva a gente embora”, conta István Teichel, que cultiva um pequeno lote no condado natal de Orbán. “Isso vai mais fundo.”

Esse clientelismo descarado não deveria acontecer. Desde os primeiros dias da União Europeia, a política agrícola teve enorme importância como um sistema imutável de bem-estar público. Quando o sistema se expandiu, a contabilidade não acompanhou.

Os governos de cada país publicam algumas informações sobre quem recebe o dinheiro, mas os maiores beneficiados se escondem por trás de estruturas complexas de propriedade. E, embora em parte os agricultores recebam com base na área, os dados de propriedade ficam em segredo. Apesar de ter um banco de dados central, a União Europeia citou a dificuldade de baixar a informação requisitada para se recusar a fornecer uma cópia.

Em resposta, o Times compilou seu banco de dados próprio com registros empresariais e governamentais, dados sobre venda e arrendamento agrário, documentos vazados e registros de terras não públicos enviados por denunciantes e pesquisadores.

O Times confirmou operações que beneficiaram um grupo de pessoas ligadas ao meio político, visitou fazendas em vários países e usou dados dos governos para determinar o pagamento de subsídios a alguns dos maiores beneficiários. A investigação também se baseou no trabalho de jornalistas húngaros e outros que investigaram irregularidades agrárias apesar da repressão à imprensa pelo governo de Orbán.

Embora a União Europeia defenda o programa de subsídios como rede de segurança essencial para os trabalhadores agrícolas, estudos mostraram que 80% do dinheiro vai para os 20% de destinatários maiores.

Na República Tcheca, o mais destacado favorecido pelos subsídios é Andrej Babiš, o ruralista bilionário que também é primeiro-ministro. A análise do Times constatou que, em 2018, suas empresas na República Tcheca receberam pelo menos 42 milhões de dólares em subsídios agrícolas. Nos últimos anos, o governo tcheco aprovou regras que tornam mais fácil grandes empresas – a dele é a maior – receberem mais subsídios. Babiš negou qualquer infração.

Na primavera de 2019, as autoridades búlgaras realizaram investigações que revelaram ligações corruptas entre autoridades do governo e empresários rurais. Um dos maiores produtores de farinha de trigo do país foi acusado de fraude ligada aos subsídios e aguarda julgamento.

Na Eslováquia, o promotor admitiu a existência de uma “Máfia agrícola”. Pequenos agricultores relataram ter sido surrados e extorquidos por terras que recebem subsídios. O jornalista Ján Kuciak foi assassinado em 2018, quando investigava bandidos italianos que tinham se infiltrado no setor agrícola e estabelecido relações com políticos poderosos.

Apesar disso, as autoridades da União Europeia desconsideraram um relatório de 2015 que recomendava reforçar as regras dos subsídios agrícolas como salvaguarda contra a grilagem de terras na Europa Central e Oriental. O Parlamento Europeu re-jeitou um projeto de lei que proibiria políticos de se beneficiarem dos subsídios que administram. E as altas autoridades engavetaram os indícios de fraude. “Temos um sistema quase hermeticamente fechado”, disse Rudolf Mögele, uma das maiores autoridades agrícolas da Europa, numa entrevista no ano passado.

Poucos líderes tentaram explorar o sistema de subsídios de maneira tão impudente e generalizada quanto Orbán na Hungria.

Grilagem gigantesca

Em 1º de maio de 2004, a União Euro-peia absorveu oficialmente boa parte da região produtora de cereais da Eu-ropa Central e Oriental. A Hungria, a República Tcheca, a Polônia e a Eslováquia, todas ex-satélites soviéticos, estavam entre os dez países que entraram no bloco naquele dia (a Romênia e a Bulgária entraram três anos depois).

Durante as comemorações, Orbán estava num purgatório político. Foi ele o primeiro-ministro que ajudou a conduzir a Hungria para a união, mas em 2001 os eleitores o rejeitaram, a ele e a seu partido Fidesz. Então ele percebeu um dos primeiros grupos de protesto a surgir na nova Hungria: os agricultores.

Em 2005, agricultores húngaros atulharam as ruas estreitas de Budapeste numa imensa manifestação. Queriam os subsídios a que tinham direito segundo a Política Agrícola Comum do bloco, ou PAC, mas o pagamento não tinha chegado. O governo esquerdista da Hungria era desorganizado e despreparado.

O programa foi pensado depois da Segunda Guerra Mundial para aumentar os salários no campo e elevar a produção de alimentos em países arrasados pelo conflito. Com o tempo, tornou-se um alicerce fundamental para a criação da economia sem fronteiras que se transformaria na moderna União Europeia.

No fundo, o programa é definido por uma proposta simples: em geral, os agricultores recebem com base nos hectares que cultivam. Quem controla mais terra recebe mais dinheiro.

A Europa Central e Oriental tem muita terra, boa parte dela ainda pertencente ao Estado, um legado da época comunista. As autoridades europeias trabalharam intimamente com os novos governos em questões como os padrões dos testes em alimentos ou o controle de fronteiras, mas só deram atenção limitada aos subsídios.

Orbán mostrou sinais do que estava por vir antes mesmo que a Hungria entrasse no bloco. Ele vendeu 12 empresas agrícolas pertencentes ao governo a compradores com ligações políticas. Eles pagaram preços reduzidos pelo direito exclusivo de usar a terra durante 50 anos, habilitando-se a receber os subsídios quando a Hungria passasse a fazer parte do sistema. “É uma economia clientelista, em que amigos e aliados políticos recebem tratamento especial”, denunciou György Raskó, ex-ministro da Agricultura húngaro. “Orbán não inventou o sistema. Só o administra com mais eficiência.”

Sem cargo, Orbán viu o potencial de poder político e econômico dos subsídios no campo. Também ficou curioso com o homem que foi bem-sucedido nas negociações em nome dos agricultores que protestavam: József Ángyán.

Depois da queda do comunismo, Ángyán, economista rural grisalho e prognata, defendeu que os pequenos proprietários poderiam manter as aldeias vivas com práticas sustentáveis. Ele criou um programa ambiental numa das universidades mais prestigiadas do país e ajudou a construir uma fazenda orgânica chamada Kishantos, com 450 hectares de trigo, milho e flores. “Ele queria ajudar os agricultores locais”, disse István Teichel, o agricultor do condado de Fejér.

Orbán concorreu mais uma vez a primeiro-ministro em 2010 e quis arregimentar os votos rurais. Agora, Ángyán era parlamentar, e seus laços com os agricultores lhe davam prestígio político no campo. Orbán o convidou a ir à sua casa a oeste de Budapeste para conversar sobre o futuro da agricultura húngara.

Ángyán vislumbrava um governo que desse mais poder político e econômico aos pequenos agricultores. Orbán deixou claro que queria implementar as ideias de Ángyán e se ofereceu para nomeá-lo subsecretário de Desenvolvimento Rural. “Quando fala, Orbán demonstra tanta convicção”, disse Ángyán, “que todo mundo acredita nele.”

Depois da vitória acachapante de Orbán, Ángyán solicitou ao governo que dividisse suas imensas propriedades e as arrendasse a pequenos e médios agricultores. Mas Orbán queria arrendar latifúndios inteiros à panelinha de seus aliados. “Não tive absolutamente nenhuma oportunidade de realizar o que queria fazer”, contou Ángyán.

Em 2011, o novo governo de Orbán começou a arrendar centenas de milhares de hectares de terras públicas. Boa parte delas foi para pessoas ligadas ao Fidesz, de acordo com dados obtidos com o governo e com Ángyán.

Os novos arrendatários pagavam pouco ao governo, mesmo quando se habilitaram a receber subsídios europeus. A operação provocou críticas
estridentes da mídia local, mas os agricultores comuns se mantiveram calados, apesar de terem ficado de fora.

Ángyán se sentiu traído e deixou o governo em 2012, mas permaneceu no Parlamento.

Numa reunião a portas fechadas no início de 2013, Ángyán confrontou Orbán na frente dos aliados mais confiáveis do primeiro-ministro no Parlamento. “Você vai destruir o campo!”, Ángyán se recorda de ter dito.

Orbán começou um monólogo e comparou a política a um campo de batalha. Os que são leais, disse, podem contar com a proteção dos irmãos em armas. “E os que não são?”, perguntou o primeiro-ministro. “Atiramos neles também.”

Feudalismo moderno

Em 2015, o governo de Orbán vendeu centenas de milhares de hectares de terra agrícola estatal, em boa parte a aliados políticos. Tecnicamente, foi um leilão. Mas muitos agricultores menores declararam que lhes disseram que nem se dessem ao trabalho de participar, porque os vencedores tinham sido  previamente escolhidos. Muitos nem souberam do leilão.

Ferenc Horváth, de 63 anos, mora num casebre no condado de Fejér e descobriu tardiamente que o governo vendera toda a terra estatal que cercava seu minúsculo lote. “Aconteceu muito depressa”, lamentou. “Nem sabíamos que aqui era possível comprar terras.”

Seu novo vizinho era Lörinc Mészáros, amigo de infância de Orbán e ex-encanador que hoje é bilionário. Cercas subiram da noite para o dia, e o fedor de esterco de porco cobriu a região.

Mészáros e os parentes compraram mais de 1.500 hectares no condado de Fejér, de acordo com uma análise do Times dos dados agrários compilados por Ángyán e outras fontes. O genro de Orbán e outro amigo do primeiro-ministro também compraram grandes propriedades ali perto.

Esse é um tipo de feudalismo moderno no qual os pequenos agricultores vivem à sombra de interesses imensos e politicamente poderosos – com a ajuda do financiamento da União Europeia. De acordo com a análise dos dados de pagamentos húngaros feita pelo Times, empresas controladas por Mészáros e Sándor Csányi, influente empresário de Budapeste, receberam 28 milhões de dólares em subsídios em 2018.

Eles estão qualificados para receber uma série de subsídios – pagamentos diretos com base na área, subsídios voltados para a pecuária de carne e leite e programas de desenvolvimento rural –, todos distribuídos pelo governo do Fidesz.

“Sempre me acusam, e isso me irrita muito, de receber os maiores  subsídios”, disse Csányi numa entrevista. A razão, explica ele, não é política. São os porcos. “Produzo cerca de um sexto da carne suína húngara.”

Rajmund Fekete, porta-voz de Orbán, disse que os procedimentos húngaros para os subsídios “satisfazem inteiramente” a regulamentação europeia, mas se recusou a responder a perguntas específicas sobre Ángyán ou sobre a venda de terras que beneficiou parentes e aliados de Orbán.

Em Bruxelas, as autoridades europeias foram alertadas para os problemas na Hungria. Um relatório de maio de 2015, encomendado pelo Parlamento Europeu, citava “negócios escusos com terras” no país.

Em termos mais amplos, os investigadores descobriram que proprietários ricos com conexões políticas tiveram poder para anexar terras em toda a Europa Central e Oriental. “Isso acontece principalmente quando eles conspiram com autoridades do governo”, revelou o relatório.

Os investigadores afirmaram que o programa de subsídios agrícolas incentivou as empresas a adquirir cada vez mais terra. “Nesse sentido, a PAC claramente fracassou no cumprimento dos objetivos declarados”, disse o relatório, preparado pelo Transnational Institute, com sede em Amsterdã.

Numa resposta por escrito, as autoridades agrícolas europeias condenaram os achados como pouco confiáveis e declararam que cabia aos líderes de cada país criar e impor políticas de uso da terra.

Essa deferência aos governos nacionais é uma marca registrada da União Europeia. Mas deixou o bloco incapaz ou indisposto a enfrentar líderes que tentam solapar seus esforços, disse Tomás García Azcárate, autoridade agrícola europeia durante muito tempo e que hoje treina os formuladores de políticas do continente.

“A União Europeia tem instrumentos limitadíssimos para tratar com os estados-gângsteres”, disse ele.

Fora do governo, Ángyán estudou meticulosamente a venda de terras pelo governo de Orbán, entrevistou agricultores abandonados pelo governo e mapeou as conexões políticas entre os compradores.

No condado de Csongrád, por exemplo, familiares e pessoas ligadas a János Lázár, parlamentar do Fidesz, estavam entre os maiores compradores e obtiveram cerca de 520 hectares. E no condado de Jász-Nagykun-Szolnok, parentes e pessoas ligadas a autoridades do governo Orbán, o atual e o anterior, estavam entre os maiores vencedores nos leilões de terra. Desde então, muitos arrendaram os lotes a grandes empresas agrícolas que recebem subsídios europeus.

Enquanto os clientes políticos enriquecem, muitos pequenos agricultores
contam com os subsídios para sobreviver. Isso os desestimula a criticar demais o sistema, disseram muitos, principalmente diante das represálias.

Ferenc Gal, que planta alfafa e cria vacas e alguns porcos na fazenda da família, contou que se candidatou ao arrendamento de cerca de 130 hectares porque os subsídios europeus os tornariam lucrativos antes mesmo que ele plantasse alguma coisa. Supostamente, os agricultores locais deveriam ter preferência, mas a terra foi para investidores ricos de fora da região.

Quando se queixou, Gal logo se transformou num pária: segundo ele, inspetores do governo apareceram em sua fazenda, repentinamente preocupados com a qualidade da água e do meio ambiente. Ele disse que autoridades locais o aconselharam a não se candidatar mais a futuras concessões rurais. “Quando a gente entra na lista negra”, lamenta Gal, “acabou.”

Política do medo

As represálias também atingiram József Ángyán.

Meses depois de sair do gabinete, autoridades do governo cancelaram o arrendamento de Kishantos, a fazenda orgânica que ele ajudou a administrar durante vinte anos. Deram a terra a seguidores políticos.

Depois, autoridades educativas fecharam o departamento de Ángyán na Universidade Szent István.

Em entrevistas na Hungria, alguns economistas e cientistas agrícolas se recusaram a discutir a propriedade da terra ou pediram que não fossem identificados quando falassem de sua pesquisa. Os agricultores também viram o que aconteceu com o homem que falou por eles. “Se Ángyán não consegue fazer nada, o que eu conseguiria?”, perguntou Teichel, o agricultor do condado de Fejér.

Enquanto o governo administrar as concessões, ninguém pode se dar ao luxo de abrir a boca. “Quem critica o governo”, disse Ángyán, “fica de fora. Não recebe nada.”

Além disso, acrescentou ele, não há verdadeira oposição no campo.

A associação de pequenos agricultores de Ángyán forjou uma aliança com o partido de Orbán para reeleger o primeiro-ministro. Agora, os encarregados pelo grupo detêm cargos de poder no governo.

Ángyán se retirou da vida pública. Depois de fornecer ao Times os dados que vinha compilando, parou de atender aos telefonemas.

Quando Teichel o viu recentemente num funeral, Ángyán perguntou como iam o agricultor e sua família. “Não sou importante”, respondeu Teichel. “Sou só um soldado. E você, como está? Você é o general.”

Ángyán, com ar derrotado, respondeu: “Como eu continuaria sem ninguém atrás de mim?”

Por Selam Gebrekidan, Matt Apuzzo e Benjamin Novak

Esta versão foi condensada por Reader’s Digest. © 2019 de New York times Co.