Acompanhe uma viagem ao longo da corrida de deserto mais famosa do interior da Austrália.
Redação | 1 de Janeiro de 2019 às 16:00
Viaje conosco e descubra as histórias e tradições escondidas ao longo da corrida de Birdsville, no interior árido da Austrália.
Birdsville, a cidade dos pássaros.
Poucos nomes lembram melhor as regiões mais distantes do outback, o árido sertão australiano. Encostada no deserto de Simpson, na extremidade sudoeste de Queensland, este lugar remoto fica num vasto oceano de terra.
Embora minúscula, a cidade se destaca por duas importantes tradições. A primeira é a difícil e histórica Birdsville Track, estrada que vai para a Austrália Meridional. A outra são as Birdsville Races, o mais famoso festival de corridas do interior da Austrália.
Durante a maior parte do ano, Birdsville hiberna, assando no calor que, no verão, chega quase aos 50°C. Os meses mais frescos (ainda quentes) do meio do ano (de abril a outubro) atraem um pinga-pinga constante de turistas em veículos 4×4. Mas em setembro, quando chegam as corridas no primeiro fim de semana da primavera, a população passa de 115 habitantes para cerca de 7 mil.
Trailers, motocasas e barracas se espalham pela área de camping.
Um campo além da pista de pouso se enche de pequenos aviões, e os pilotos proprietários acampam sob as asas. No limite da cidade, os veículos param para passar pelo bafômetro usado por policiais perplexos com sua exótica missão. Os carros são todos 4×4, eriçados de antenas de rádio do cidadão; sem isso, não se viaja até tão longe.
A pista de corrida – a distância de uma volta de ônibus ou três quilômetros de caminhada a partir da cidade – não tem uma folha de capim. É tão pedregosa e poeirenta quanto a própria Birdsville Track. Os cavalos se abrigam do sol de 33°C num comprido estábulo com telhado de metal. Ali perto, uma arquibancada semelhante faz o mesmo pelas pessoas, embora em escala maior.
Os cavalos partem do lado mais distante da pista. São meros pontinhos sob o pó que se levanta quando galopam – a única nuvem num hemisfério de perfeito céu azul. Logo fazem a ampla curva da pista oval e trovejam pela grande reta arenosa. Alguns segundos do martelar de cascos e eles passam a toda, provocando uma explosão empolgada na linha de chegada. O roteiro se repete numa tarde sossegada, culminando no sexto páreo, o da Taça Birdsville, de 1.600 metros e 35 mil dólares.
Além da pequena multidão perto dos corretores de apostas, reina a tranquilidade.
Fantasias engraçadas – homens de vestido, algumas latas de cerveja de corpo inteiro, mocinhas como anjos ou demônios – aumentam o clima de festa. A multidão é pacífica, contente por tomar uma cerveja, fazer apostas e dar umas risadas. Os problemas parecem tão distantes quanto Sydney ou Brisbane.
O esforço necessário para comparecer já é metade da diversão. Há uma certa poesia em simplesmente estar ali, como se o próprio ato fosse uma expressão da imensidão da Austrália.
À primeira vista, esta não parece uma região de pecuária. Mas a salgadeira é uma forrageira bastante proteica. E Birdsville surgiu como ponto de travessia do rio Diamantina para os peões do século 19. Eles levavam os rebanhos gordos do oeste de Queensland para o mercado da Austrália Meridional. A Birdsville Track acompanha os 518 quilômetros dessa rota de gado pelo deserto de Birdsville a Marree, na Austrália Meridional. Ali, em 1884, foi inaugurada a ligação ferroviária para Port Augusta.
O nome é um mistério.
Pode ser uma corruptela de Burtsville, de um armazém aberto na cidade por volta de 1880 pelo pioneiro pecuarista Percy Burt. Outros dizem que é uma homenagem à riqueza surpreendente de pássaros – até gaivotas, a 750 quilômetros do litoral mais próximo. É claro que ambas as histórias podem ser verdadeiras caso tenha havido um trocadilho com o nome de Burt.
Seja como for, o nome já existia em 1882, quando começaram as corridas de Birdsville. Mais de 150 pessoas, quase todas criadores de gado, vieram de vários locais naquele mês de setembro. Queriam assistir a uma dúzia de corridas em três dias de festa. Mais tarde, no Burt’s Store, os interessados formaram o clube que organiza as corridas até hoje. Sua receita atualmente beneficia o Real Serviço de Médicos Voadores.
Na época, havia mais moradores do que visitantes. Cerca de 300 pessoas tinham seu lar em Birdsville nas duas primeiras décadas. Quase o triplo da população permanente de hoje. Não era só o próspero comércio de gado. A apenas 11 quilômetros da fronteira entre Queensland e a Austrália Meridional, Birdsville era um posto alfandegário fundamental. Isso num tempo em que as colônias cobravam taxas umas das outras e pedágio sobre o movimento de rebanhos.
Quando a Federação aboliu essas cobranças em 1901, Birdsville murchou para umas 20 pessoas até meados do século passado. Mas o transporte terrestre para Marree e as corridas anuais perduraram.
E também perdurou o Birdsville Hotel, o coração da cidade desde 1884.
Instalado num modesto prédio de pedra de um só andar que dá para o campo de pouso no meio da cidade, hoje ele é considerado um dos bares mais simbólicos do sertão australiano.
Se quiser, tire uma foto lá dentro – quase todo mundo o faz. O costume é antes jogar algumas moedas num recipiente no alto da parede, como doação para o Real Serviço de Médicos Voadores. Todos aqueles chapéus pregados no teto são outra tradição do sertão.
Em julho de 1939, o hotel foi o ponto final escolhido para a histórica expedição científica do geólogo explorador Cecil Madigan. Ele atravessou o deserto de Simpson em lombo de camelo. Essa jornada, que incluiu a imensa depressão salgada e seca do lago Eyre, promoveu a ideia de que a região era o “coração morto” da Austrália, apenas uma terra devastada e desolada.
Mas ali ficava o lar de algumas almas resistentes, como o carteiro Tom Kruse.
A dura vida profissional do carteiro na Birdsville Track foi imortalizada pelo documentário The Back of Beyond (“Para lá do além”, 1954). Kruse partia quinzenalmente de Marree e enfrentava atoleiros de areia, eixos quebrados, riachos inundados e pneus furados para levar a correspondência pelo meio do nada.
Registrada em filme, a história de Kruse fixou a Birdsville Track na mente do público como supremo desafio do sertão australiano. E, quando o turismo pelo sertão ganhou ímpeto, as Corridas de Birdsville se tornaram emblemáticas da cidade. Percorrer a difícil estrada de cascalho e ver as corridas distantes era homenagear uma característica essencial do país.
E ainda é. Embora hoje os puros-sangues, os corretores de apostas e as senhoras com rede nos cabelos sejam apenas um aspecto dessa homenagem.
O Birdsville Hotel é uma festa constante no fim de semana da corrida. A sarjeta no lado de fora se enche de latas de cerveja vazias que faíscam no fim da tarde. O pôr do sol atrai as bandas para o jardim da cervejaria. E não faltam clássicos do rock australiano bombando no deserto.
No outro lado da rua fica o grande letreiro da Trupe de Boxe de Fred Brophy.
É o último espetáculo do tipo na Austrália e, talvez, no mundo. As tendas de boxe foram proibidas nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Austrália (com exceção de Queensland e do Território do Norte).
Numa plataforma elevada ao ar livre, Fred, apresentador da quarta geração, convida todos os transeuntes a lutar com um de seus boxeadores. Lá dentro, o clima é elétrico; só há espaço em pé, e todos os olhos estão presos no ringue. A música retumbante emudece o ruído das luvas no rosto dos loucos e corajosos. Eles lutam de roupa comum, sem proteção de cabeça. Dão o seu melhor, mas ninguém derruba os boxeadores da trupe. Machucados e ensanguentados, pelo menos os desafiadores ganham muitos aplausos por tentarem.
No calor do momento, suas bravatas parecem trazer uma fagulha do espírito do sertão. O espírito que fez lutadores como Kruse se lançarem contra uma situação impiedosa.
Regularmente aplanada, a Birdsville Track é mais mansa hoje em dia, mas ainda não foi domesticada.
Com tempo seco, um 4×4 moderno consegue percorrer em um dia a rota de terra com o conforto da suspensão e do ar condicionado, mas atolar em lugares mais arenosos e furar pneus no cascalho pedregoso ainda são riscos bem reais.
A primeira parada (e único posto de combustível) do caminho é Mungerannie, um bar de beira de estrada com acomodações 315 quilômetros ao sul de Birdsville, na Austrália Meridional. Com mais 150 quilômetros de caminho, o camping de Clayton Wetlands se vangloria de ter um chuveiro naturalmente quente de poço artesiano que afasta o frio cortante da manhã gelada do deserto.
A aurora em Clayton traz uma sinfonia sutil de pássaros canoros diversificados.
Mais de 100 espécies foram registradas ali; um passeio por esse oásis verde revela galahs, corvos e gaviões voando em círculos. O festival de vida avícola enche o mato ao longo do leito de um riacho seco tatuado com rastros de canguru, inclusive as inconfundíveis marcas da cauda.
Os últimos 53 quilômetros terminam em Marree, onde a estrada se une à Oodnadatta Track. Diante do imponente Marree Hotel (1883) descansa o velho caminhão do correio de Tom Kruse, ao lado da ferrovia desativada que já levou carne de Birdsville a portos distantes. Com o serviço original encerrado, essas relíquias continuam a contribuir com a região como atrações turísticas.
Mas Birdsville e sua estrada nunca recorreram a glórias passadas.
A Big Red, uma imensa duna de areia 35 quilômetros a oeste de Birdsville, marca o início do deserto de Simpson. Com 40 metros de altura, é a mais oriental das 1.140 dunas vermelhas paralelas. E permite uma vista magnífica das planícies adjacentes.
Desde 2013, todo mês de julho o Big Red Bash atrai grandes números de rock e música country australiana ao festival musical remoto e, talvez, mais paisagístico do país. Este ano, cerca de 9 mil pessoas acamparam ao lado da duna para ver The Angels, Hoodoo Gurus, John Farnham e outros levarem sua música para o sertão mais profundo.
Parece que Birdsville sempre encontrará maneiras novas de florescer.