Nos últimos anos, o mundo reverberou as notícias chocantes de que o branqueamento devastava a Grande Barreira de Coral da Austrália, o maior e mais famoso
Julia Monsores | 9 de Janeiro de 2020 às 20:00
Nos últimos anos, o mundo reverberou as notícias chocantes de que o branqueamento devastava a Grande Barreira de Coral da Austrália, o maior e mais famoso dos ecossistemas de corais. Alguns, desesperados, declararam que o recife estava quase morto em consequência do aquecimento global. Um veículo da mídia chegou a publicar seu “obituário”.
No outro extremo, os céticos da mudança climática provocada pelo ser humano desdenharam o branqueamento, considerando-o exagerado ou parte de um ciclo natural – ou ambos. Para aumentar a confusão, muitas refutações da “morte” da Grande Barreira dão a impressão de que o problema não é grave. Então, em quem acreditar?
“Ambos estão muito distantes da verdade”, diz David Wachenfeld, diretor de recuperação do recife da Autoridade do Parque Marinho da Grande Barreira de Coral. “Ela não está morta, mas não está bem. Encontra-se sob extrema ameaça, com partes muito danificadas, e precisamos fazer mais do que estamos fazendo agora. Coletivamente. Globalmente.”
Uma dificuldade fácil de esquecer quando se discute a Grande Barreira da Austrália é seu tamanho. As observações sobre uma parte logo se transformam em conclusões enganosas acerca do todo. “A Grande Barreira de Coral é enorme”, diz Wachenfeld. “Acho que muita gente não consegue entender algo com essa escala. Pensam na Barreira como um único destino turístico, como pensariam na Torre Eiffel. Mas até agora, e aqui bato na madeira, nenhum ciclone, branqueamento ou nada causou impacto grave sobre a Barreira como um todo.”
Há uma razão para o explorador Matthew Flinders tê-la chamado de Grande Barreira de Recifes – e não recife – em 1814. Na verdade, o “recife” são 2.900 recifes separados numa área mais ou menos igual à da Polônia, com corais suficientes para cobrir 15 vezes a região metropolitana de Londres. A maioria dos visitantes só vê uma fração minúscula: 7% do recife recebe 83% do turismo. A barreira se estende por 2.300 quilômetros ao longo do leste da Austrália e, em conjunto, constitui a maior estrutura viva do mundo. Esses bilhões de corais minúsculos são a única fauna visível da órbita da Terra.
No entanto, há apenas um quarto de século, ela era ainda maior. A cobertura total dos corais caiu à metade desde a década de 1980, de acordo com o Instituto Australiano de Ciência Marinha. Fatores importantes, como resíduos agrícolas que degradam a qualidade da água e infestações de estrelas-do-mar-coroa-de-espinhos – que comem coral e crescem com os dejetos –, são o foco dos planos de recuperação, e tem havido progresso.
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Mas agora a Grande Barreira de Coral enfrenta uma crise existencial que vai além do poder da Austrália de resolver sozinha. “O aquecimento global é a ameaça número um à Barreira”, diz Wachenfeld.
O branqueamento em massa do coral atingiu a Grande Barreira em dois anos seguidos, 2016 e 2017, o que nunca tinha acontecido. O branqueamento ocorre quando os corais, estressados pelo calor, expelem as algas zooxantelas que vivem dentro deles numa relação simbiótica e lhes dão sua cor. Isso acontece porque as zooxantelas, quando superexpostas à luz e ao calor, produzem oxigênio em quantidade tóxica.
No entanto, os corais ficam brancos sem elas e, se a temperatura da água se mantiver alta por demasiado tempo, começam a morrer, porque precisam das zooxantelas para fornecer nutrientes e reciclar resíduos. Depois de branquearem, se a temperatura diminuir, esses corais estressados recuperam lentamente a cor e as zooxantelas, ou morrem. Alguns branqueiam em apenas quatro semanas de um aumento de 1°C, e em oito semanas começam a morrer.
Em geral, os recifes de coral se recuperam de branqueamentos ocasionais em pequena escala, mas eventos extremos de branqueamento eram desconhecidos há uns 20 anos. O de 2017 foi o pior até agora, embora não tenha branqueado 93% do total de corais, como se supôs. Essa foi uma leitura incorreta do achado de que 93% dos 911 recifes inspecionados tinham pelo menos algum branqueamento, extenso ou não. As pesquisas de acompanhamento mostraram uma mortalidade geral de 22%. Mesmo assim, o resultado foi a maior mortandade de corais já registrada.
O dano foi de cortar o coração, principalmente nas águas do litoral nordeste da Austrália. O norte relativamente remoto sempre foi o menos afetado pelo impacto humano, porque recebe menos de 3% do turismo da Grande Barreira. “Voamos 4 mil quilômetros pelas partes mais intocadas do recife e só vimos quatro que não tinham branqueamento”, contou Terry Hughes, professor e ecologista de recifes de coral, sobre a pesquisa no norte, e a chamou de “a viagem de pesquisa mais triste da minha vida”.
Por que a imensa divisória norte-sul? As águas mais frias habitadas pelos corais do sul dão mais proteção contra o branqueamento induzido pelo calor? Não. “Os corais são muito adaptados às condições locais”, diz Wachenfeld. “Um mês com um grau acima da média em fevereiro tem uma temperatura na ilha Heron [no sul] diferente da ilha Lizard [no norte]; a temperatura é mais baixa, mas o estresse dos corais ainda é o mesmo.”
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Em outras palavras, o coral branqueia em temperatura mais baixa no sul do que no norte. Em 2016, o fator que aliviou o sul foi o ciclone Winston, que levou chuva de uma depressão tropical e atuou como proteção, fazendo a temperatura do mar cair abaixo das médias locais e aumentando a cobertura de nuvens.
“Nós escapamos por pouco”, afirma Sara Keltie, guia naturalista da ilha Heron, onde os recifes ainda são vibrantes. Mais conhecida pelos ninhos de tartaruga e como resort ecológico, a ilha Heron abriga a mais antiga estação de pesquisa científica da Grande Barreira de Coral da Austrália, onde os biólogos vêm estudando quanta mudança climática ela aguenta.
O branqueamento em massa de 2016 coincidiu com El Niño, um ciclo climático natural em que a temperatura do mar sobe. No entanto, Keltie diz que, como estamos aquecendo o oceano com dióxido de carbono, “os corais estão chegando mais perto do patamar de branqueamento e, quando há El Niño, uma proporção maior da espécie entra em estresse”.
Alguns biólogos argumentaram que, com o tempo, o coral se deslocará para o sul. De acordo com Wachenfeld, esse pensamento ignora o impacto que a mudança climática já causou sobre a Grande Barreira. “Os corais existem há quatrocentos milhões de anos”, explica ele. “Já passaram por mudanças climáticas. Mas o clima nunca mudou tão depressa quanto estamos observando agora. Assim, o fato de os animais se adaptarem e sobreviverem na escala de tempo geológico no passado não significa que conseguirão se adaptar no futuro, agora que estamos mudando tudo mais depressa.”
“O segundo problema é que centenas de milhões de seres humanos dependem dos recifes de coral para obter alimento, proteção litorânea da energia das ondas e renda com atividades como o turismo. Não adianta dizer a um ser humano: ‘Olhe, seu recife pode morrer em 20 anos por causa da mudança climática, mas não se preocupe. Daqui a cinco mil anos, ele vai voltar.’”
O terceiro problema é uma outra ameaça da mudança climática para os recifes de coral, que também vem acontecendo depressa demais. “A mudança climática está deixando o oceano mais ácido”, diz Wachenfeld. “Cerca de 30% do dióxido de carbono que lançamos na atmosfera quando queimamos combustível fóssil se dissolve no oceano.”
Na água salgada, o dióxido de carbono forma ácido carbônico, que libera íons de hidrogênio que se ligam aos íons carbonato que flutuam livremente e de que os corais duros precisam para formar seu esqueleto de carbonato de cálcio. Quanto mais dióxido de carbono no mar, menos os corais duros conseguem construir recifes. Os íons de hidrogênio começarão a dissolver o coral duro e as conchas para se ligar ao carbonato caso haja escassez de íons livres.
Na ilha Heron, uma experiência de longo prazo vem observando o impacto de vários níveis de acidez e temperatura sobre o mesocosmo (replicação de ecossistemas) do recife de coral. Dois futuros foram testados: um aumento de 4°C da temperatura global a partir da média pré-industrial, esperado para o ano 2100 se nada for feito para reduzir a emissão de dióxido de carbono; e um aumento de 2°C, aquecimento máximo buscado pelo Acordo de Paris, tratado internacional para combater a mudança climática. A acidez do oceano causada pelo nível atmosférico de dióxido de carbono que produziria essas temperaturas também foi examinada.
“Todos os corais, nos dois cenários futuros, branquearam”, diz Keltie. “Mas seguiram trajetórias diferentes. No cenário em que não fazemos nada, os corais morreram de fome e começaram a se dissolver.”
Embora o futuro de 4°C pareça fatal, há esperança para os recifes de coral num mundo que cumpra as metas do Acordo de Paris. “No cenário em que não fazemos nada, alguns corais da Austrália sobreviveram: os de crescimento lento, como o Colpophyllia natans, que têm uma demanda menor de energia”, diz Keltie. “No fim da experiência, eles ainda cresciam e se reproduziam.”
Para Wachenfeld, o esforço mundial não pode parar no Acordo de Paris. “Nenhuma das previsões que vi fica abaixo de 2°C em 2100”, destaca ele. “O consenso mais recente diz que, a curto prazo, o aquecimento global pode chegar a +2°C, mas para manter os recifes saudáveis no futuro temos de reduzi-lo para +1,5°C. Mesmo a 1,5°C, os recifes sofrerão um estresse grave; já passaram pelo pior branqueamento da vida com cerca de 1°C.”
“O recife está bem vivo, mas também sob muita pressão, e precisa desesperadamente de mais ajuda.”