As guerras dos Bálcãs ainda acontecem na Bósnia, só que agora no sistema escolar. Veja como esses jovens sobrevivem nessa realidade.
Redação | 1 de Junho de 2020 às 01:01
Uma cerca de arame divide o pátio de uma escola em Travnik, no centro da Bósnia e Herzegovina. À direita, há uma fachada azul limpa, com pilares e um conjunto de portas de madeira trabalhada. O muro marrom à esquerda da cerca está marcado por buracos de bala da guerra da década de 1990 e riscado de grafites.
Foi ali que Elisabeth Hrgic´ e Inas Dagoja, ambos de 25 anos, frequentaram as aulas: Elisabeth no lado direito bem-cuidado da cerca, Inas no lado esquerdo arruinado. Ela é católica e croata bósnia, ele um muçulmano bósnio (bosníaco). Os dois não se conheceram na época em que estudavam ali; a campainha que marca o recreio toca em horários diferentes de cada lado e as entradas eram separadas. Só em 2014, aos 20 anos, os dois se conheceram numa boate e se apaixonaram.
Separados pela cerca, eles tiraram uma foto nesse local no dia de seu casamento em junho de 2019: Elisabeth de vestido branco, com as mãos unidas às de Inas pelos espaços entre os arames. Ela publicou a foto no Facebook com uma legenda incentivando os amigos a “ensinar aos filhos que somos todos iguais”.
A foto viralizou. Milhares de bósnios a compartilharam, e jornais dos Bálcãs a publicaram. “A cerca era uma fronteira mental; ninguém nos dizia ‘não vá até lá’, mas na nossa cabeça nem queríamos”, disse Elisabeth ao Reader’s Digest no pátio, alguns dias depois do casamento.
O Centro Escolar Petar Barbaric´ , escola particular e católica de Elisabeth, é frequentado por croatas. Embora em teoria qualquer um possa frequentar a escola pública de Inas, na prática a Escola Secundária Mista Travnik recebe principalmente bosníacos. As autoridades dizem que a cerca foi construída no pátio por segurança, mas para muitos bósnios ela é um símbolo da segregação generalizada da educação, não só em Travnik, mas em todo o país.
O debate nacional provocado pela foto teve menos a ver com a cerca de Travnik, que separa uma escola pública de outra particular, e mais com a questão muito maior de uma segregação sistematizada nas escolas administradas pelo governo em várias regiões da Bósnia e Herzegovina.
A Bósnia tem três grupos etnorreligiosos principais: croatas (em geral, católicos), bosníacos (muçulmanos) e sérvios (cristãos ortodoxos). Eles foram lançados uns contra os outros no conflito de 1992-1995, no qual 100 mil pessoas morreram. Os linguistas consideram bastante similar o idioma falado pelos três grupos, com pequenas diferenças. Mas, depois da guerra, os Acordos de Dayton, que ainda servem de Constituição de fato do país, só mencionaram a educação de passagem, e a questão foi deixada praticamente para as secretarias de Educação dos dez cantões do país.
Um sistema chamado “duas escolas sob o mesmo teto” foi instaurado em algumas regiões etnicamente mistas da Bósnia, segregando as escolas como medida de curto prazo, com a ajuda da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), entidade governamental internacional que ajudou a restaurar a paz no país.
Transcorridos mais de 20 anos, algumas dessas escolas se unificaram, mas 56 ainda funcionam em 28 locais. Os especialistas dizem que elas impedem o andamento da conciliação e que estão criando terreno para as divisões étnicas que poderiam ameaçar a paz. Em 2001, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico considerou as escolas “reféns do nacionalismo latente” promovido pelos partidos políticos mais poderosos da Bósnia, e em 2018 a OSCE renovou publicamente o apelo aos líderes para “pôr fim à prática prejudicial e discriminatória […] de modo a assegurar um futuro estável e próspero”.
O tipo de divisão varia. Em algumas escolas, os alunos usam entradas e espaços físicos diferentes no mesmo prédio. Em outras, as instalações são compartilhadas de acordo com um cronograma. A discordância quanto aos horários alimenta brigas entre famílias. Numa escola de Vitez, a 16 quilômetros de Travnik, alunos croatas e muçulmanos dividiam o laboratório de informática até surgir uma disputa sobre a manutenção do equipamento. O problema foi resolvido com a construção de um segundo laboratório e a separação completa dos alunos.
A mentalidade de “nós e eles” perpetuada pelas escolas segregadas tem impacto profundo sobre as crianças. Aleksandra Krstovic, diretora do programa nacional de educação da Missão da OSCE na Bósnia e Herzegovina (BiH), explica: “Vários estudos mostraram que a distância social, o preconceito e os estereótipos entre os jovens da BiH são significativos e que o nível de confiança, aceitação e entendimento do ‘outro’ é baixíssimo.” Um relatório de 2018 da OSCE afirma que, com a segregação, as crianças aprendem que “as diferenças entre elas são inconciliáveis”.
Os moradores dizem que as divisões são mais visíveis nos tabus contra o amor interétnico. Elisabeth e Inas percorrem um caminho difícil; um amigo bosníaco provocou uma briga em seu casamento quando se queixou de uma canção croata. E, quando a fotografia do casal viralizou, eles começaram a receber agressões pela internet. “Seus pais não os educaram direito”, dizia uma mensagem no Facebook; outras são desagradáveis demais para publicar. Os dois conhecem outros casais mistos que se separaram por causa da intolerância enfrentada.
Esse clima está levando os jovens a emigrar, conta Elma Salihagi, coordenadora de projetos de uma entidade educativa não governamental da cidade de Jajce, no centro da Bósnia, onde várias escolas são divididas.
A população da Bósnia diminuiu de 4,3 milhões de habitantes em 1991, pouco antes da guerra, para 3,3 milhões hoje. Em 2018, 4.474 pessoas abriram mão da cidadania bósnia, 1.385 delas entre 18 e 25 anos, de acordo com autoridades citadas na mídia. “Todos dizem que é o desemprego, mas não é”, afirma Salihagi, aludindo à estatística elevada de falta de vagas de trabalho. “É esse sistema que faz as pessoas partirem, a mentalidade de que tudo deveria ser dividido em três, bosníaco, croata, sérvio. É absurdo”, acrescenta ela.
Os políticos e as autoridades locais demonstraram pouco interesse em abordar a segregação, mesmo onde as divisões são claríssimas. Em Stolac e Cˇapljina, duas cidades do município de Mostar, no sudoeste do país, as escolas primárias segregadas simplesmente ignoraram a decisão favorável à fusão tomada em 2014 pelo Superior Tribunal num processo aberto pelo grupo ativista de auxílio jurídico Vaša Prava.
Enquanto isso, na própria cidade de Mostar, considerada a mais dividida da Bósnia, croatas e bosníacos levam vidas separadas nos dois lados do rio Neretva, onde houve uma linha de frente durante a guerra.
A maioria das escolas do lado oeste do rio só atende a croatas; do lado leste, a bosníacos.
É por isso que os defensores da unidade insistiram em integrar os alunos numa rara instituição de Mostar onde havia a presença de crianças bosníacas e croatas: o Ginásio Mostar, grandiosa escola austro-húngara fundada em 1902. Ele fica no lado oeste do rio, na confluência entre as duas comunidades, e, antes da guerra, tinha um corpo discente multiétnico. No entanto, depois ela começou a operar como “duas escolas sob o mesmo teto”, segregando os 650 alunos.
As ONGs e a OSCE viram o potencial de um projeto pioneiro que reuniria os jovens de Mostar. Depois de uma campanha intensa da comunidade internacional e da promessa de recursos para reformas, as escolas bosníaca e croata se uniram legalmente em 2004. Em 2009, os conselhos de pais também foram unificados.
Mas, com escasso apoio dos políticos locais, a experiência nunca decolou. Hoje, a única aula conjunta de croatas e bosníacos é a de informática; em 2014, o conselho de pais decidiu dividi-la de novo. Os alunos croatas e bosníacos podem interagir durante as pausas de 15 minutos em que correm para lanchar na cantina, mas a maioria não o faz. Ajla*, de 15 anos, explica no portão da escola: “Nós nos vemos nos corredores. Temos conhecidos, não amigos.” Para ela, é uma oportunidade perdida de realmente conhecer mais croatas.
Na falta de vontade política, cabe aos jovens encontrar ligações entre si. Mas isso não é fácil quando a noção de diferença é tão forte. Faris Cˇovic´ , de 19 anos, foi a uma festa recente no lado oeste de Mostar e ouviu gritos de torcedores de futebol croatas que o chamavam de “filho da *** do leste”. O impressionante é que isso não o desanimou.
Como vice-presidente do conselho estudantil da cidade, Faris estava numa reunião no ano passado quando um coordenador mencionou o plano dos políticos de dar a uma nova ponte sobre o rio o nome de um croata, oficial do exército. “A gente sabia que o nome contribuiria para a divisão e o conflito”, explica ele. E os adolescentes do conselho estudantil discutiram a questão. “Por que não chamá-la de ‘Ponte dos Estudantes’?”, perguntaram.
Eles redigiram uma carta e uniram forças com outros grupos de jovens. Cerca de 20 mil estudantes assinaram uma petição, e a cidade cedeu. Hoje, a Ponte dos Estudantes liga a universidade croata de Mostar, na margem oeste, à universidade bosníaca no leste.
É uma pequena vitória numa cidade atolada em problemas complexos. Mas outras histórias também mostram que os jovens promovem mudanças quando as autoridades falham. Em maio de 2016, Nikolas Rimac, estudante de 17 anos, estava em aula em sua escola secundária vocacional mista em Jajce quando o professor de história deu a notícia de que bosníacos e croatas daquela escola e da escola Nikola Šop logo seriam separados. Embora sempre tivesse frequentado escolas mistas, Nikolas já visitara uma escola segregada local, onde os alunos eram forçados a usar banheiros diferentes, e detestou a ideia.
Ele reuniu colegas croatas e bosníacos das duas escolas secundárias. Primeiro eles exigiram reuniões, mas as autoridades escolares as negaram. Depois, escreveram cartas ao governo regional, que também os ignorou. Por fim, começaram a realizar manifestações nas ruas, levando cartazes com frases como “Segregação é um mau investimento” e “Estamos aqui para criar o futuro, não para repetir o passado”.
Os meios de comunicação local e diplomatas internacionais os apoiaram, mas houve um contragolpe. O diretor da Nikola Šop proibiu os alunos de participar dos protestos. A mãe de uma garota chegou a perder seu emprego público depois de falar na televisão sobre a questão, provocando medo nas outras famílias. Muitas crianças largaram a escola.
Então, no verão de 2017, Nikolas teve uma ideia. Professores e alunos deveriam simplesmente largar as ferramentas de trabalho e sair de sala. “Vocês não têm mais nada a perder”, disse ele aos professores.
Fazia calor no dia planejado para a greve. Nikolas observou a imensa maioria dos professores e alunos da escola saírem para o pátio. Os meios de comunicação locais foram observá-los à vontade ao ar livre, dividindo os lanches. “Estão vendo? Nós nos divertimos juntos”, disse Nikolas aos repórteres.
Alguns dias depois, Nikolas acordou com o alerta da caixa de e-mails. Um jornalista local lhe mandara uma reportagem que dizia que o governo regional estava abandonando os planos de segregação escolar. Seu coração se alegrou. “Foi como se baníssemos tudo de ruim num estalo”, conta Nikolas. “A Bósnia é um lugar onde todos querem mudanças, mas ninguém se dispõe a mudar. Portanto, nós fomos a mudança.”
Mais de 100 estudantes ocuparam as ruas em outra manifestação, dessa vez exigindo a unificação das escolas segregadas de todo o país. Todos usavam máscaras para que os alunos da Nikola Šop não fossem identificados. “Não acabou”, adverte Nikolas, agora com 20 anos e frequentando a universidade em Sarajevo.
Ele espera que alunos e professores usem as redes que formaram na batalha de Jajce para continuar a campanha. Em novembro de 2018, a OSCE homenageou os manifestantes com o Prêmio Max van der Stoel por melhorar o destino de minorias nacionais.
A luta será longa. Por causa do governo descentralizado, assim como do complicado sistema legal da Bósnia, não há uma única abordagem para dar fim às “duas escolas sob o mesmo teto” ou a outras formas de discriminação escolar, de acordo com Krstovic, da OSCE. “O acordo obtido depois das manifestações estudantis de Jajce é específico, e cada caso tem de ser abordado individualmente”, acrescenta ela.
Embora a OSCE trabalhe em nível mais alto para convencer os líderes bósnios a encontrar uma solução, a pressão dos próprios cidadãos é a única estratégia que traz resultados em prazo mais curto.
Em Travnik, crianças de patins e patinetes se misturam numa tarde quente de sexta-feira na rua mais movimentada da cidade. As meninas conversam enquanto deslizam, serpenteando entre as famílias. Os meninos brincam nos escorregadores de um parquinho próximo. São de famílias croatas e bosníacas, diz Elisabeth Hrgic´ , mas pela aparência e pela fala não dá para distinguir.
Nem Elisabeth nem Inas sabiam que, alguns dias depois de mostrarem sua cidade natal ao Reader’s Digest, uma retroescavadeira amarela JCB chegaria a seu antigo pátio para derrubar a cerca que antes os separava. Embora o diretor da escola negue, os bósnios concluem que foi por causa da foto que viralizou.
As autoridades da escola católica planejam substituir a cerca, mas, em vez de dividir o pátio, a nova barreira contornará a propriedade inteira – as duas escolas juntas.