Parece que ficamos com medo da tristeza. Mas a verdade é que ela tem algo a nos ensinar sobre a felicidade. Entenda mais sobre isso.
Rayane Santos | 19 de Outubro de 2021 às 12:00
Parece que ficamos com medo da tristeza. Tem havido tanta ênfase na felicidade, no pensamento positivo e na autoestima invencível que corremos o risco de esquecer que aprender a lidar com as situações difíceis é importante para ser uma pessoa completa.
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É óbvio que as emoções “positivas” são mais agradáveis e é mais fácil conviver com elas, mas é normalíssimo sermos às vezes inundados por ondas de pesar ou tristeza e paralisados por sensações de desespero, dúvida ou desapontamento. Todas essas emoções têm algo a nos ensinar sobre nós, e sem elas jamais saberíamos o que é felicidade.
Tudo depende do que queremos dizer com “felicidade”. Então, comecemos pelo princípio. O filósofo grego Aristóteles ensinava que a vida ideal era a da eudaimonia, palavra que costuma ser traduzida como “felicidade”. Mas Aristóteles não falava dos prazeres sensoriais nem endossava a vida afastada da realidade pela ilusão de que tudo é (ou deveria ser) melhor do que é.
A sua ideia de felicidade é muito mais próxima das nossas palavras “integridade” e “completude” do que da sensação de nos entregarmos aos prazeres que chamamos de “felicidade”. Para Aristóteles, eudaimonia era viver de acordo com a razão; realizar o que consideramos nossa finalidade; cumprir com o dever cívico; levar uma vida virtuosa; estar totalmente comprometido com o mundo e, principalmente, vivenciar a riqueza da amizade e do amor humano.
“A riqueza da amizade e do amor humano”? Todo mundo sabe que isso não é um mar de rosas. Os relacionamentos pessoais podem nos causar a mais profunda satisfação e dar uma contribuição imensa à nossa sensação de completude. Contudo, em essência, eles são confusos, imprevisíveis e, com muita frequência, a maior fonte de desapontamento, angústia e tristeza. E é exatamente por isso que têm tanto a nos ensinar.
Quando nos sentimos infelizes, podemos achar que a vida é má ou injusta. E é fácil perceber por que nessas horas vemos a felicidade como meta adequada para a vida ou, talvez, como o nosso estado “natural”. Mas isso seria ignorar uma verdade importante da experiência de ser humano: a tristeza é uma emoção tão autêntica quanto a felicidade.
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Os momentos de alegria e bem-aventurança, e até a sensação mais profunda de conten- tamento que às vezes nos inunda, só fazem sentido por criarem um bom contraste com as experiências de desapontamento, sofrimento ou tristeza, e mesmo com aquelas horas em que nos sentimos presos a uma rotina tediosa.
Quando ouço pais dizerem: “Só quero que os meus filhos sejam felizes”, fico sempre tentado a perguntar: “É só isso que querem para eles? Querem mesmo que sejam assim tão privados de emoções? Não querem que aprendam a lidar com o desapontamento, o fracasso e até com a injustiça?”
Quando os indivíduos vivenciam mudanças súbitas e drásticas – divórcio, falecimento, carestia, doenças que trazem risco de vida –, o nível de ansiedade sobe e são comuns sentimentos de estresse, tristeza e até pânico ocasionais. Quando as mudanças atingem toda a sociedade, temos as mesmas reações em grande escala: uma epidemia de ansiedade e uma sensação generalizada de insegurança.
Levando em conta as reviravoltas da sociedade ocidental, não admira que fiquemos um tanto traumatizados: reinventamos a instituição do casamento (e a abandonamos em grande número); transformamos a vida familiar; a taxa de natalidade nunca foi tão baixa; reduzimos a família; sentimos os tremores de uma crise econômica internacional; aumentamos o abismo entre riqueza e pobreza e reescrevemos a estatística do mercado de trabalho (principalmente no caso da participação feminina e do trabalho em meio expediente).
Fomos arrastados pela revolução da tecnologia de informações e comunicações que transformou nosso modo de vida e trabalho e redefiniu as noções de privacidade e identidade, principalmente entre os jovens.
Como previu Alvin Toffler há 40 anos no visionário livro “O choque do futuro”, todas essas rupturas do nosso modo de vida não só aumentaram o nível de ansiedade (e promoveram o consumo de tranquilizantes) como também criaram uma sensação incômoda de incapacidade e perda de controle.
É real o perigo de só piorar as coisas se dermos ênfase demasiada ao “pensamento positivo” e não ao processo de viver com coragem, gentileza e até nobreza diante de tantas mudanças.
Temo que até a “felicidade” possa adquirir novo significado como reação ao nosso desejo de controle: corremos o risco de tratar a felicidade como sintoma ou sinal de que estamos “no controle”, o que faria com que a tristeza, por sua vez, fosse sinal de que não estamos – como se alguém pudesse escolher ficar tris- te ou alegre.
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Ter uma atitude positiva é melhor do que ter uma negativa. Mas ser realista é melhor ainda. E ser realista é aceitar que a riqueza da vida está no jogo de luz e sombra.
“Alegre-se!”, dizemos uns aos outros, mas por que tentaríamos provocar um estado emocional festivo em quem passa pelas sombras ou enfrenta perdas ou desapontamentos? Nisso, concordo com Marcel Proust: “Só nos curamos do sofrimento vivenciando-o por inteiro.”
Muita gente diz que o desenvolvimento e o crescimento pessoal realmente importantes vieram com a dor e o sofrimento, não com o prazer. Assim, quando precisamos ficar tristes, é um erro apressar o processo de lidar com a tristeza, o desapontamento ou a angústia. A felicidade costuma nos visitar em sur- tos rápidos, mas as emoções mais sombrias precisam de tempo para fazer o seu serviço.
Hugh Mackay é escritor, psicólogo e cientista social. Seu último livro foi What Makes Us Tick? The Ten Desires That Drive Us (sem previsão de publicação no Brasil).