Descubra como é a Lego House, a gigantesca obra-prima interativa criada pelo neto do inventor do brinquedo.
Mariana Valle | 19 de Outubro de 2021 às 17:00
Com dedos fortes, firmes e calejados, duas adolescentes desfazem construções na Lego House, usando colherinhas e cunhas de plástico para separar as peças. Há milhares delas, umas redondas, outras retangulares, minúsculas, outras nem tanto, vermelhas, pretas, brancas, azuis e verdes, unidas em forma de carros, caminhões, prédios, flora e fauna, toda uma miríade de formas que brotam da imaginação das crianças.
Esse é o emprego de fim de semana das jovens: desmantelar os sonhos que crianças construíram na semana anterior para que aqueles mesmos blocos e peças possam ser novamente transformados nos dias seguintes.
Estamos numa sala dos fundos da Lego House, um enorme complexo na pequena cidade dinamarquesa de Billund, onde nasceram os blocos encaixáveis de brinquedo que deixam fascinadas, há 60 anos, crianças de todas as idades. Mas, para manter felizes os milhares de visitantes da Lego House, alguém tem de desmontar as criações, para que as peças possam voltar à circulação. É aí que entram Cecilie Lau Andersen e Frida Zeng Wei Mortensen, ambas de 16 anos, que fazem parte de uma equipe de 20 adolescentes.
“Faça assim”, me ensina Cecilie. Ela segura uma rã de Lego na mão esquerda e girando o punho direito enquanto projeta o polegar. “Isso. Até que você leva jeito!”
As duas me mostram como procurar arranhões e impressões digitais, sinais de que uma peça está pronta para sair de circulação. “Nunca sabemos o que nos espera quando entramos”, diz Cecilie. “Às vezes, temos de separar até mil peças de Lego num dia.”
“É uma parte necessária da magia”, acrescenta Frida.
“Vejo pela primeira vez a Lego House do avião, de onde ela parece um complexo residencial de vanguarda, com uma estrutura de quatro andares e muito vidro”, diz Frida.
Há 21 blocos parecidos com Lego montados de forma assimétrica. Todos menos um com o teto em tons de azul, verde, vermelho e amarelo. É tão grande que faz os prédios e as casas que a cercam parecerem uma aldeia de brinquedo. De repente, percebo: estou olhando uma casa de verdade construída com blocos tipo Lego de concreto e cerâmica, com uma “peça” branca empoleirada no alto.
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O nome Lego vem das palavras dinamarquesas leg godt, ou brinque bem – e é isso que guia a Lego House. Aberta ao público desde setembro de 2017, ela se espalha por 12.000 m² no local da antiga prefeitura de Billund. A cidade de 6.100 habitantes, que se intitula “Capital das Crianças”, tem Lego por toda parte.
Localizada a 265 km de Copenhague, a sede do Grupo Lego fica aqui, assim como a primeira fábrica de moldagem de peças da empresa e uma instalação secretíssima com janelas fechadas de metal para evitar olhares curiosos enquanto novas criações são projetadas. O parque temático Legoland está há meio século na cidade e atrai até 2 milhões de visitantes por ano. Mas a Lego House, é algo bem diferente: uma obra-prima aerodinâmica e interativa, um sonho antigo de Kjeld Kirk Kristiansen, neto do inventor do brinquedo.
“Det bedste er ikke for godt” , esculpiu o avô numa placa de madeira na parede de sua carpintaria. Somente o melhor é bom o suficiente.
Com base nesse legado, o neto queria um lugar onde as crianças pudessem aprender a história da empresa e pôr a mão na massa, sem importar a idade. Um lugar que destacasse o trabalho complexo de uma comunidade internacional de 500 mil fãs adultos de Lego. Um lugar que mostrasse a versatilidade das peças Lego; afinal, um programa de computador desenvolvido por um professor dinamarquês demonstrou que, com apenas seis peças dois por quatro, é possível fazer 915.103.765 coisas diferentes.
Para realizar seu sonho, Kjeld contratou o escritório de arquitetura Bjarke Ingels’ Group, de Copenhague, para construir a Lego House. As obras começaram em 2013 e duraram quatro anos. Embora o Lego Group não revele nenhum valor, o custo não foi problema, com materiais de primeira linha, como azulejos alemães e muito aço escondido nas paredes para reforçar a estrutura.
O resultado é um lugar que parece uma gigantesca casa de bonecas de plástico, com paredes revestidas com azulejos brancos que refletem a luz fosca da tarde.
Embora não tenham usado peças do brinquedo para construir a Lego House, todas as medidas obedecem à escala Lego. Assim, é possível recriá-la em miniatura.
Com a sensação de pisar em outro mundo, atravesso a porta. Entro num saguão arejado onde as pessoas podem se encontrar para tomar um café ou comer. Há pisos de carvalho, muitos bancos, esculturas de Lego e, em homenagem à primavera, narcisos de Lego saindo de floreiras. À minha esquerda, há uma lanchonete onde dois robôs de olhos giratórios zumbem e pegam numa esteira rolante, em caixas que imitam Lego, os pedidos dos fregueses que esperam no balcão. Na extrema direita, uma máquina vermelho-vivo – uma versão menor das que existem nas fábricas Lego de verdade – solta um apito de trem enquanto a água vira vapor e empurra grãos de plástico para um molde de fazer peças.
Multidão na árvore
Há espanto e gritos não articulados de admiração. “Assombroso”, escuto. E “fantástico”. Sigo o olhar deles para cima, mais para o alto, quase 16 metros, até perceber que a árvore não é real, mas feita de Lego: 6.316.611 peças, para ser exato, montadas e coladas em torno de uma estrutura de metal para que não caia, com 13 ramos “folhosos” e luxuriantes que se estendem e encostam na escadaria que gira em torno dela.
“É bem incrível, não?”, pergunta Stuart Harris, britânico que é projetista-chefe da Lego e brinca com as pecinhas desde que era “moleque”. Harris se mudou em 2013 e foi uma das seis primeiras pessoas contratadas, antes do início das obras. Agora está ao meu lado, na base da árvore, de braços cruzados sorrindo como um pai orgulhoso.
Oficialmente chamada de “Árvore da Criatividade”, ela é, ao mesmo tempo, uma homenagem à origem da empresa em 1932 como produtora de patos de brinquedo, feitos de madeira – com um pato “escavado” no tronco da árvore –, e ao seu futuro, com um guindaste amarelo de Lego lá no alto.
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Sozinho, esse projeto exigiu de Stuart e de três equipes de projetistas da Dinamarca e da República Tcheca mais de 24.000 horas de planejamento e construção, cerca de 12 anos de trabalho se fosse uma pessoa só. A instalação, desde a base verde que lembra grama até o alto, exigiu três turnos de oito horas por dia durante nove meses.
Com o peso espantoso de 20 toneladas, parece que ela suporta a casa, pois não há outro pilar de sustentação à vista. “Quando estávamos construindo, a empreiteira nos disse que as medidas estavam erradas e um galho era comprido demais. Demos um jeito, mas às vezes eu me perguntava se daria tudo certo. Então deu. Ah, como deu.”
Enquanto subimos a escada rumo ao topo da árvore, vejo dioramas de conjuntos clássicos de Lego aninhados nos ramos superiores, desde um castelo medieval amarelo até a futurista 928 Galaxy Explorer. Quando olho com mais atenção, há macacos de Lego vestidos como cavaleiros e astronautas e uma placa de homenagem zombeteira aos filmes de alienígenas. Ela diz “We come in pieces” (Viemos em pedaços) – um trocadilho com “We come in peace” (Viemos em paz).
A partir dali, subimos um segundo lance de escada até um espaço de azulejos brancos chamado “Galeria de Obras-Primas”.
Percebo que é o interior da peça de “Lego” com oito claraboias que vi quando cheguei de avião. A sala retangular é cheia de vitrines de vidro que contêm esculturas de Lego feitas por fãs adultos – desde um telefone de disco até um monstro bem redondo com tentáculos, baseado em um desenho animado japonês. Mas a pièce de résistance – ou pièces – são os três tiranossauros de boca aberta e dentes afiados. Sobre um pódio redondo de três metros, idênticos em tamanho e formato, cada um tem mais de três metros de altura e pousa um pé com garras sobre uma peça gigante, ao lado de um ovo de dinossauro de Lego que começa a rachar.
“Esta é nossa lenda de como o dinossauro desenvolveu seu rugido”, conta Stuart. “Eles pisaram numa peça e tropeçaram, rugindo até o chão.”
O detalhe: cada dinossauro é construído com um dos três tipos de Lego que há no mercado: o System original; o Duplo, com peças que têm o dobro do tamanho, para que crianças pequenas brinquem em segurança; e o Technic, que inclui eixos e peças diferentes. Stuart e sua equipe consultaram 26 fãs adultos enquanto os projetos ganhavam vida; entre suas sugestões estão as tartarugas usadas como olhos do dinossauro e os baldes da embalagem para fazer garras.
Cada zona é marcada por uma cor: amarelo para a emoção; azul para a habilidade cognitiva; vermelho para a criatividade; e verde para a representação, a imaginação e a capacidade de contar histórias.
Começamos com a área verde. Num canto, duas crianças riem enquanto criam um bonequinho Lego com peruca loura, elmo de cavaleiro e uma câmera fotográfica. Em outro, um menino dirige o próprio filme, com elenco de Lego que inclui pais angustiados e crianças que resolvem a situação.
Boa parte do restante da área verde está ocupada por três exposições, chamadas de “World Explorer”: uma paisagem urbana, uma ilha tropical e uma região montanhosa com uma cidadezinha na encosta. Imóveis, as crianças assistem à transformação do “dia” de cinco minutos em “noite”, de dois. No total, sua construção também levou cerca de 24 mil horas, com 2.500 bonequinhos Lego que participam da vida cotidiana. Embora não sejam interativas, elas fascinam as crianças, que gritam ao ver um personagem que conhecem.
“Antes mesmo de construir a Lego House, sabíamos que queríamos uma experiência assim”, diz Stuart. “Algo que se possa visitar um milhão de vezes sem ver tudo.”
Em meio aos quatro quilômetros de cabos, quatro mil lâmpadas, 1.500 árvores, guindastes, trens e moinhos, há centenas de histórias individuais que Stuart começou a escrever quando os modelos estavam sendo criados. Enquanto observo, eles tomam vida: Darth Vader esquiando numa encosta, perseguido por R2D2; uma fazenda de dinossauros com árvores que dão pizzas; um robô gigante chamado Moby Brick que demoliu a parede de um teatro de ópera porque quer assistir ao espetáculo com um delicado binóculo – feito de Lego, é claro.
Como Stuart e sua equipe inventam essas coisas? Ele para um instante antes de responder. “Bem, a melhor maneira de se manter criativo é não virar adulto, não é? Manter a mente aberta às possibilidades.”
Não importa aonde eu vá, encontro essa mesma sensação de assombro e diversão.
Como na área azul, que contém cidades futuristas e charadas urbanas, o equilíbrio entre construções comerciais e espaços verdes. Já na área vermelha, com as duas cachoeiras multicoloridas do teto ao chão, uma de peças System, outra de Duplo. Além disso, na área amarela, o “Critter Creator”, o “Criador de Bichos”, um campo de flores de Lego e a área de projetos de peixes psicodélicos, com um “aquário” projetado na parede em que peixes de todas as formas, cores e tamanhos exibem suas protuberâncias, sorrisos e listras.
É nessa última seção que encontro Morten Lund Mortensen, um dos 70 agentes de brincadeiras da Lego House. Ele se ajoelha ao lado de um menininho obstinado com criar um peixe que se recusa a erguer os olhos. “Experimente esta peça”, sugere Morten, estendendo uma peça azul.
Em silêncio, o menininho a pega, mordendo o lábio enquanto decide onde colocá-la. Depois, usando a pulseira high-tech com um código de barras que recebeu ao entrar, o menino escaneia o peixe na tela de um computador interativo e, fascinado, o vê surgir entre os outros peixes no aquário projetado na parede.
“Temos de ser bons em entender as crianças, e Lego é uma linguagem em si”, explica Morten. “Com um peixe, ou uma flor, consigo conversar com uma criança da China mesmo sem falar chinês.”
Adoro essa imagem: Lego como uma linguagem em si, uma babel de cores e formas simples compreendida no mundo inteiro.
Conforme a luz do domingo se esvai, milhares de crianças deixam a Lego House, segurando relutantes a mão dos pais e olhando para trás.
Mas, nas salas dos fundos, o que foi montado precisa ser desmontado. Frida segura uma rã de Lego especialmente complicada numa das mãos e brande a cunha com a outra. “Estas são as mais difíceis, porque as peças principais são planas e redondas, e as crianças adoram bater nelas como panquecas”, diz ela. “Força muito os dedos. Depois de cinco horas nisso, às vezes eles sangram.”
O trabalho pode ser cansativo e até sofrido. Mas elas o adoram pelo que representa: é o cimento que mantém viva a mágica Lego House para os outros. “No começo, a gente não se achava importante”, revela Cecilie. “Agora, sabemos que, sem nós, a casa desmorona.”
Por Lisa Fitterman