Descubra por que o sistema de aprendizes da Alemanha provoca inveja na Europa e é um exemplo a ser seguido no mundo.
Douglas Ferreira | 19 de Janeiro de 2020 às 12:00
Poucos jovens de 20 anos gostariam de se levantar às 5h45 todos os dias para chegar ao trabalho às 7h30. E Priscilla Wölbling admite que olha com inveja as amigas e seus horários mais amenos – “além, é claro, das longas férias”, diz ela, sorrindo. No entanto, embora as colegas de Priscilla possam estar aprendendo, ela aprende e recebe salário em seu segundo ano como aprendiz na imensa fábrica da Mercedes-Benz em Sindelfingen, perto de Stuttgart.
Mais parecida com uma pequena cidade, essa é a maior fábrica da Mercedes-Benz na Europa; com 26 mil operários na linha de produção e mais 11 mil funcionários no departamento de Pesquisa e Desenvolvimento.
Em toda a Alemanha, a Daimler AG (grupo que controla a Mercedes-Benz) emprega quase 6 mil aprendizes em 31 programas; 20 deles dedicados à habilidade necessária para a fabricação de automóveis e veículos, 11 na área administrativa.
“Eu não sabia nada sobre carros além do fato de terem quatro rodas e um volante”, diz Priscilla, que está aprendendo sistemas de mecatrônica automotiva, engenharia mecânica, eletrônica e informática presente nos veículos de hoje e nos robôs que, cada vez mais, os montam. “Desde que consigo me lembrar, me interesso por coisas técnicas”, diz ela. “Um amigo meu já era aprendiz de mecatrônica aqui e falava de forma muito positiva sobre o programa. A oportunidade de ganhar dinheiro durante o treinamento também foi um grande fator de atração.”
Assim, depois de uma prova on-line, Priscilla veio para a fábrica de Sindelfingen para a semana de recrutamento “Let’s Benz”.
“Fiz a prova de inscrição, passei por uma entrevista, conheci alguns aprendizes e experimentei algumas coisas. Gostei muito do que vi e do fato de que há moças sendo treinadas. Embora torça para nosso número aumentar ainda mais. Uma semana depois me disseram que eu fora aceita; comecei naquele mês de setembro os três anos e meio como aprendiz.”
Outro iniciante era Max Ehrlich, de 17 anos, que está treinando para ser mecânico de construção. “Somos responsáveis por todas as peças da carroceria. Sempre me interessei por carros, mas não sabia nada sobre como eram construídos”, diz ele.
“40% dos empregadores europeus afirmam que não encontram pessoas com as habilidades certas para crescer”, avisa a Aliança Europeia de Aprendizes; dedicada a fortalecer a qualidade e a imagem dos aprendizes na Europa. E, embora 13 milhões de pessoas estejam ligadas a programas europeus de treinamento vocacional e educacional, estes geralmente envolvem pouco mais do que visitas de escolares a locais de trabalho.
Mais da metade dos jovens alemães se tornam aprendizes quando terminam a escola em tempo integral. O que diferencia os programas alemães é que eles se baseiam no conceito de “duplo treinamento”, em que teoria e prática andam de mãos dadas.
Ainda assim, é importante que também tenham bons conhecimentos gerais, e há matérias como alemão, ética e estudos sociais. Como explica Thomas Fuhry, chefe de treinamento vocacional de Sindelfingen, “contratamos nossos aprendizes como funcionários, com um salário de quase mil euros por mês. Damos todo o treinamento prático e investimos pesadamente nas instalações e nas novas tecnologias necessárias para treiná-los. Mas nossos aprendizes também frequentam uma escola técnica, onde aprendem a teoria por trás da prática. O governo alemão financia essa parte de seu aprendizado”. Todas as grandes empresas alemãs e algumas menores oferecem programas semelhantes, trabalhando com governo, universidades técnicas e câmaras de comércio.
Em 2014, quase 1,4 milhão de jovens alemães estavam em 350 programas como esse, que duram de dois a três anos e meio, com idade média na formatura de 22 anos.
No Reino Unido, menos de 2% dos jovens de 16 anos se tornam aprendizes, e o governo prometeu atingir a meta de três milhões de aprendizes até 2020. Mas o Instituto de Estudos Fiscais, entidade independente de pesquisa, disse que o financiamento da iniciativa, baseado num imposto cobrado dos empregadores, “não vale o que pesa”.
Na França, onde o desemprego entre os jovens está em 21%, o problema não é tanto a qualidade do ensino e a experiência no trabalho. O obstáculo continua a ser o esnobismo tradicional diante do treinamento vocacional num país onde as Grandes Écoles se concentram em criar elites e as regras sobre aprendizes parecem mudar mais depressa do que as empresas conseguem preencher os formulários.
Os países com sistemas de aprendizes mais eficazes – Áustria, Suíça e Países Baixos – adotaram em boa medida o modelo alemão.
“Acho que essa é a fórmula do sucesso.” Realmente, o ex-chanceler alemão Gerhard Schröder começou a carreira como aprendiz de varejo numa loja de ferragens.
A Daimler e a Mercedes-Benz oferecem treinamento no trabalho desde 1916. Mas os aprendizes alemães têm suas raízes na Idade Média, quando as guildas aceitavam jovens para aprender a trabalhar com os mestres-artesãos. Não é coincidência que a moderna Alemanha tenha a taxa de desemprego de jovens mais baixa da Europa: 6,7%, contra a média de 16,7% na União Europeia.
Todo mês, Priscilla e Max vão à escola vizinha Gottlieb-Daimler para aprender a teoria que precisam para o seu trabalho.
O centro de treinamento de aprendizes da principal fábrica de Sindelfingen ocupa dois grandes andares. Está cheio de automóveis em rampas e em bancadas de teste e tem o mesmo equipamento que os aprendizes usarão para trabalhar na fábrica. Inclusive os robôs mais modernos para montagem e acabamento de pintura, eletrônica de diagnóstico e máquinas de usinagem e estamparia.
“Em meu primeiro ano, aprendi como funciona um motor de quatro tempos desmontando-o e montando o de novo para que funcionasse perfeitamente”, explica Priscilla. “Depois fomos para a parte elétrica.”
Em sua área, Max começou com apenas um pequeno aspecto da construção da carroceria. “Ensinar o carro inteiro de uma vez causaria sobrecarga de informações”, diz Joaquim Santos; que terminou seu período de aprendiz na Daimler há 34 anos e hoje é responsável pelos projetos de aprendizado e qualificação internacional de Sindelfingen. “Começamos aos poucos e vamos aumentando até eles terem um conhecimento íntimo dos produtos e processos. Pessoas como Priscilla e Max, que chegaram com pouco conhecimento sobre carros mas com desejo de aprender, são ótimos aprendizes. Em minha experiência, os que pensam que já sabem tudo sobre carros tendem a não passar na prova de seleção!”
Durante o treinamento, os jovens sabem que o programa de aprendizado não é um ensaio para o mundo do trabalho; na verdade, é o primeiro passo de uma carreira que a Mercedes espera que seja longa. E esse primeiro passo fica cada vez mais técnico. Hoje, os aprendizes usam impressoras 3D no centro de treinamento para fazer protótipos, exatamente como ocorre no Centro de Design Avançado da fábrica. Um protótipo pode ser feito em minutos em vez de dias ou semanas.
Max usa uma máscara de Robocop para fazer soldagem virtual na tela de um computador.
Mesmo assim, o trabalho manual ainda é uma habilidade respeitada, e exige-se um alto padrão. Os aprendizes que se especializam em tecnologia de pintura e revestimento sabem que acabarão trabalhando com robôs pintores. Mas, primeiro, têm de aprender a fazer diversas misturas de cor e a usar manualmente a pistola de pintura. “Meu projeto de exame prático é fazer uma ferramenta que possa ser utilizada na linha de produção”, diz Max. “Tem de ser precisa e funcionar perfeitamente, e terei seis horas para fazê-la.”
O desafio de Priscilla é criar três testes de diagnóstico de sistemas elétricos e desempenho do motor. Depois, passar por uma série de provas escritas. A história da empresa não é esquecida. Entre várias réplicas feitas por aprendizes, há um Benz Patent-Motorwagen de 1886, considerado o primeiro automóvel do mundo.
“Com toda a robótica e tecnologia à disposição, eles serão, em primeiro lugar, comunicadores e solucionadores de problemas. É importantíssimo que entendam o conceito VICA – o desafio da volatilidade, da incerteza, da complexidade e da ambiguidade –, que todos enfrentamos no ambiente industrial, econômico e político. Amanhã, nada será como esperamos que seja hoje.”
Então por que outros países não seguem o modelo alemão? Bem, até certo ponto, seguem, porque empresas globais alemãs têm fábricas no mundo inteiro com essa abordagem de treinamento. A Daimler AG tem mais de 2 mil aprendizes pelo mundo e mantém programas de cooperação que envolvem 4 mil jovens na China, Índia e outros países. Os aprendizes estrangeiros também costumam visitar o centro de treinamento de Sindelfingen.
Max Ehrlich prefere o longo prazo. “Quando terminar o período de aprendiz, quero ir para a universidade antes de voltar à Daimler como profissional.” Isso ele pode fazer com o apoio do Programa Acadêmico Daimler. Priscilla diz que gostaria de passar para Pesquisa e Desenvolvimento.
Apesar de acordar cedo, trabalhar oito horas por dia e atender às exigências de trabalhar e estudar que acabam com o tempo livre; Priscilla e Max não veem desvantagens na vida de aprendiz. Eles têm confiança e, apesar da juventude, são hábeis no gerenciamento do tempo. Ambos adoram esportes e sair com amigos. Priscilla também é voluntária no corpo de bombeiros local.
A todos os aprendizes que terminam bem o treinamento a Mercedes-Benz oferece um contrato de trabalho. Quando lhe perguntam qual é a taxa de abandono, Thomas Fuhry parece perplexo. “Ora, é zero”, diz ele, abrindo um sorriso.