É tudo uma questão de ciência

Ser um dos astrofísicos mais populares do mundo tem seu preço. Sempre que corpos celestes viram notícia, Neil deGrasse Tyson é procurado por jornalistas

Redação | 1 de Novembro de 2020 às 08:00

Neil deGrasse Tyson/Divulgação -

Ser um dos astrofísicos mais populares do mundo tem seu preço. Sempre que corpos celestes viram notícia, Neil deGrasse Tyson é procurado por jornalistas ávidos por seus comentários científicos. Mas não são apenas profissionais da comunicação que buscam suas opiniões. 

O nova-iorquino de 62 anos, diretor do Planetário Hayden no Museu Americano de História Natural, vem recebendo, ao longo da carreira, e-mails e cartas das mais variadas pessoas com questionamentos não só
sobre a ciência, mas sobre tudo: da morte à criação dos filhos, de religião a educação.

Uma seleção dessas perguntas e de suas reflexões foi compilada em Respostas de um astrofísico (Editora Record), livro lançado este mês no Brasil. Inspirados na disposição de Neil deGrasse Tyson em ir fundo em todas as áreas do conhecimento, fizemos a ele algumas perguntas, via Zoom, sobre um assunto que preocupa muitos no momento: a negação da ciência.

Neil DeGrasse é o apresentador do podcast StarTalk sobre o espaço, ciência e cultura popular.

Confira a entrevista da Seleções com Neil DeGrasse


Seleções: O que você acha das pessoas que negam a ciência?

Neil: Em um país democrático, com liberdade de pensamento e ação, desde que não se tire a liberdade do outro, não me preocupo muito com a pessoa que opta por pensar que a Terra é plana, por exemplo.

Mas, se ela acha que a Terra é plana, e alcança uma posição de poder e influência sobre outras pessoas, ou, o que é ainda mais importante, uma posição de poder e influência sobre leis e legislações que afetam toda a população, isso é perigoso. Pior: é o começo do desmantelamento da civilização.

Porque a civilização como a conhecemos, e abraçamos, é permeada por inovação, ciência, tecnologia e engenharia. Coisas às quais não prestamos a devida atenção. Esta nossa conversa aqui, por exemplo, se vale dos métodos e ferramentas de doze ramos científicos.

Das ciências do espaço à física quântica e à tecnologia da informação. As pessoas usam essa tecnologia toda e, de alguma forma, escolhem o que lhes
parece bom, o que está em linha com suas filosofias, sejam elas religiosas,
políticas ou culturais, que nem sempre representam verdades objetivas. Porque a verdade objetiva é aquela obtida através de experimentos sistemáticos.

A meu ver, em lugares como o Brasil e os Estados Unidos, países com diversidade social, as leis deveriam ser criadas com base em verdades objetivas. E se as pessoas discordarem sobre o que fazer com a verdade, tudo bem para mim.

Se, nos bastidores, um grupo propõe uma solução conservadora para o problema do aquecimento global, e outro, uma liberal progressista, essas são soluções políticas para um problema que precisa ser reconhecido
por todos, senão será tarde demais.

Em outras palavras, diferenças políticas são aceitáveis desde que não se discorde sobre verdades objetivas. Do contrário, estaremos todos perdendo tempo. Reconheça que os seres humanos estão aquecendo o planeta.

Então decida como vai reagir a isso. A propósito, uma das possibilidades é
você resolver não fazer nada, mas pelo menos vai dizer isso sabendo que está aquecendo o planeta. E, então, se quiser atrair seguidores, pode levantar a bandeira do “eu não quero fazer nada a respeito, mesmo sabendo que estamos aquecendo o planeta”, o que poderia ser um novo movimento político.

Seleções: Mas algumas pessoas parecem preferir as fake news à verdade…

Neil: Sabe, é fácil culpar a internet. E vou fazer isso. Uma parte dela, pelo
menos. A internet, e principalmente os algoritmos do Facebook, segundo
o que aprendemos, nos tribalizou.

No início, a internet era uma forma de achar outras pessoas com os mesmos hobbies que os seus. Digamos que você gostasse de xadrez, e nenhum dos seus vizinhos soubesse jogar; você poderia se conectar à rede, achar um fã de xadrez do outro lado do mundo, e então começar uma partida. Fantástico.

Se você gostasse de algo pouco comum em seu círculo de amigos, poderia encontrar pessoas on-line e criar um novo círculo virtual. Mas o que aconteceu é que a parte do “encontrar pessoas on-line” saiu do campo dos hobbies e entrou no mundo das filosofias políticas.

E passou a ser assim: alguém acha que o mundo deve ser de um jeito, então
procura todo mundo que pensa da mesma forma. A propósito, se você não
concorda comigo, é meu inimigo. Essa é a tribalização. Ou você está na minha tribo, ou não está. E isso gera ressentimento, ódio, violência.

Seleções: Exemplos não faltam…

Neil: Além disso, há também a questão do sistema educacional e do ensino das ciências. Como acontece na prática? Você abre as cortinas e lá estão alunos vistos como recipientes vazios. Entra o professor e diz: “Vou encher esses recipientes com informações e depois testá-los.” Esse é um aspecto das ciências – a aquisição de conhecimento –, mas não seu âmago. O essencial está em se perguntar como as coisas funcionam e querer descobrir a resposta.

A ciência é uma forma de fazer perguntas sobre o mundo natural e, em seguida, arranjar formas de responder a essas perguntas, desenvolvendo as ferramentas e os métodos necessários para isso. Ao obter a resposta, você deve se perguntar se o resultado é verdadeiro, ou se é apenas alguma estranha consequência de como conduziu o experimento. E passar para a verificação de outro cientista.

Essa outra pessoa repete o experimento e obtém o mesmo resultado que o seu. Se isso se repetir várias vezes com outros cientistas, e o resultado obtido for sempre o mesmo, há o surgimento de uma nova verdade, o tipo de verdade objetiva que a ciência é feita para procurar e encontrar neste mundo.

Se todos recebessem o devido treinamento, se todos conhecessem a ciência e soubessem como e por que ela funciona, então, na idade adulta, não ficariam suscetíveis a sequer pensar em falar que discordam de determinados resultados científicos. Saberiam que não poderiam se valer dessa opção.

Seleções: O que você, como cientista e educador, pode fazer para trazer à razão os negacionistas; não só cidadãos comuns, mas também líderes políticos?

Neil: No caso de líderes políticos em países com eleições democráticas, eu
não focaria o líder, e sim os eleitores. Porque você pode tirar alguém do
poder por achar que não é bom para o cargo, e colocar outra pessoa no
lugar, mas e quanto aos que votaram no primeiro? Podem acabar votando
em alguém semelhante, e o problema não estará resolvido.

Numa sociedade livre, a questão não é o líder, e sim quem o elege.

Então, é por isso que eu perguntaria aos cidadãos comuns: “Vocês têm noção das consequências dessas decisões? Das consequências do que está sendo exposto a vocês?”

É isso que tento fazer. Não digo qual é a verdade e deixo que acreditem ou
não. Prefiro explicar às pessoas que, se não tomarem determinada atitude,
obterão certo resultado. Se tomarem a tal atitude, o resultado será outro. E
apresento as causas e os efeitos do que estão dizendo e fazendo.

Na minha experiência, isso já é meio caminho andado, pois, em geral, elas não chegaram a pensar nas consequências. Pergunto se já se deram conta de que, se continuarmos aquecendo o planeta, o nível do mar vai subir, e de que existem países inteiros com elevação tão baixa em relação ao nível do mar que desapareceriam do mapa, e apresento a consequência disso: refugiados climáticos. Pergunto se sabiam que as Forças Armadas dos Estados Unidos estão atentas ao que dizem os cientistas.

E explico o motivo: porque os refugiados climáticos têm que ir para algum lugar, e, com isso, desestabilizam a geopolítica do mundo. Pergunto se sabem quem mais está dando atenção aos cientistas climáticos. E respondo: empresas de seguros. Peço que parem e pensem por um segundo. Os militares e as seguradoras estão dando ouvidos aos cientistas e elas não.

Seleções: Tudo fica mais claro comprovado com fatos…

Neil: Eis mais um para aqueles que levam em consideração a opinião de
políticos sobre o que fazer com relação à Covid-19: existem plataformas nas
quais cientistas estão se comunicando. Eu não contraí o novo coronavírus.
Nem ninguém da minha família. Temos sorte? Não! Seguimos as orientações dos profissionais da saúde. Eles sabem mais que eu sobre o assunto. O que fiz foi evitar esta consequência. É isso: tento apresentar as causas e os efeitos.

E consigo trazer algumas pessoas à razão, principalmente quem está em cima do muro. Para os que estão mergulhados nas profundezas do obscurantismo, talvez não haja esperança.

Seleções: Como você acha que cidadãos esclarecidos em sociedades com políticos míopes podem fazer alguma diferença nesse sentido?

Neil: Nós vivemos numa era em que o acesso ao grupo dos que têm voz é praticamente livre. Se você é uma pessoa letrada cientificamente e possui uma visão clara do mundo e do papel que a ciência tem nele, pode criar um podcast, por exemplo. Você vai compartilhar sua visão e atrair a atenção das pessoas.

Se simplesmente disser a uma pessoa que está errada, ela vai reagir radicalizando a visão equivocada que já possui. Você pode dizer: “Ah, você não quer usar máscara? Tudo bem. Você não é o primeiro a não querer usar máscara. Em 1918, durante a pandemia de gripe espanhola, teve gente que não quis usar também, gente com o mesmo tipo de pensamento que você. Leia aqui este artigo sobre essas pessoas.

Veja o que aconteceu nas cidades onde a população quis voltar logo a frequentar cinemas, restaurantes. Foram registrados novos picos de casos. Temos evidências de que essa sua atitude não ajuda, de que vai piorar as coisas, mais gente vai morrer, e você vai contribuir para a morte de outras pessoas. É isso o que quer?” Você os coloca contra uma parede moral.

Seleções: E o que dizer a quem não dá ouvidos à ciência porque afirma que Deus vai protegê-los de tudo?

Neil: Há outras coisas que você pode dizer. O papa tem se posicionado sobre o aquecimento global, referindo-se à ausência de atitude para frear as
mudanças climáticas como um ato de imoralidade. Porque vai afetar as pessoas. Se não você, outros pelo mundo.

De forma devastadora. Então, no caso de católicos praticantes, você pode comentar sobre a imoralidade da conduta deles. A propósito, o papa tem formação científica; ele estudou química.

E é disso que precisamos: de pessoas letradas cientificamente em posições de poder e autoridade.

Voltando aos católicos, você os dobra mostrando as afirmações do papa, que refletem a grande preocupação dele com a falta de consideração que nós, como civilização, temos manifestado pelo mesmo ecossistema que vem nos sustentando há 10 mil anos, desde a era da agricultura.

Enfim, não acho que haja uma solução única para essa questão. É preciso seguir todos os caminhos possíveis. E, se as pessoas continuarem dizendo que não acreditam em cientistas, tire os smartphones delas.

Seleções: Uma solução radical!

Neil: Os telefones celulares foram inventados por engenheiros. Usando os mesmos métodos e ferramentas que levaram os cientistas climáticos a
declarar que os seres humanos estão aquecendo o planeta. Tire o celular
delas e prometa devolver no dia em que confiarem no que os cientistas
estão dizendo. Seria uma forma de fazer com que vejam tudo, e pensem
em tudo, à luz da razão.

Enquanto eu assistia ao debate presidencial americano, escrevi num tweet: “Não se pode usar a razão para convencer uma pessoa numa discussão se ela não usou a razão ao entrar na discussão.” Esse é um fato triste, e não acho que seja verdade em 100% dos casos… talvez 80%.

Porém, há pessoas que não têm noção do quanto de ciência há em seus celulares. Pessoas que podem não saber o que o papa disse sobre ciência.

Seleções: Levar a elas a informação pode ser a melhor forma de argumentar.

Neil: Elas podem nunca ter ouvido falar dos muçulmanos como um povo historicamente adepto à higienização frequente. Então, mesmo que não
tivesse conhecimentos sanitários, o muçulmano seria mais resistente a doenças pela frequência com que higieniza mãos, ouvidos, pés etc. Houve casos de peste na história. E havia os cristãos que acusavam as pessoas de contraírem a peste por terem cometido algum pecado. Mas os muçulmanos não foram afetados.

Então o raciocínio foi: eles não sofreram com a peste, e é claro que são pecadores, pois adoram outro profeta, então devem ser os causadores da peste!

Seleções: Uma inferência sem nenhuma base científica…

Neil: É o tipo de pensamento irracional que surge quando não se conta com a ajuda da ciência para promover um entendimento racional do mundo físico. E não para aí. Sabemos que foram as pulgas nos ratos as responsáveis pela disseminação da peste bubônica. Muitas mulheres possuíam gatos de estimação, e gatos matam ratos.

Assim, essas mulheres não contraíram a peste. Qual a conclusão a que chegaram? Que só podiam ser bruxas e que a peste devia ser coisa
delas! Se dedicarmos algum tempo a apontar o comportamento totalmente irracional de seres humanos na história da civilização, quando não havia ciência para ajudá-los a entender o que estava acontecendo, podemos argumentar: “E, agora que temos a ciência em tudo à nossa volta, você
opta por rejeitá-la? As consequências podem ser extremas se continuar a
pensar dessa forma.”

Seleções: E se os cientistas tivessem poder político, se fossem presidentes e pudessem usar os métodos e as ferramentas da ciência para ajudá-los a tomar decisões, como seria?

Neil: Para mim, as qualidades de um líder nem sempre passam pelo tama-
nho de seu conhecimento de ciência. É a sua capacidade de pensar: “Eu sei
o que sei, mas também sou sensível ao que não sei, então vou chamar um
especialista para me orientar.”

Nos Estados Unidos, por exemplo, esse é o gabinete do presidente. E, além
do gabinete, há uma pessoa à qual é dado o título de conselheiro científico. Os líderes estão dando ouvidos a seus conselheiros científicos? Essa é a verdadeira questão. É necessário que seu líder seja um bom ouvinte, e são tantos os líderes que não são, pois só gostam de ouvir a própria voz…

Seleções: Líderes não deveriam se ver como o centro de tudo…

Neil: Quando têm fãs, não costumam aceitar orientações – talvez porque as vejam com um ataque ao seu ego. Enfim, com cientistas, seria assim: Ah, você quer promulgar uma lei? E o que essa lei vai fazer? Qual é o objetivo dela? Como sabe se será bem-sucedida? Ah, você não sabe? Então vamos realizar experimentos para ver se ela vai fazer o que você espera. E, se não comprovarem, nada de lei.

Seleções: E voltamos à estaca zero…

Neil: Sim, um exemplo: vamos aumentar o limite de velocidade nas vias expressas porque assim as pessoas vão chegar mais rápido ao trabalho. Podemos calcular o tamanho do aumento da produtividade da sociedade. Mas, se a pessoa se envolver em um acidente, a probabilidade de que seja letal é maior.

Então investigue. Pegue os dados de vias cujo limite de velocidade é maior, veja a frequência de acidentes. Se você tirar uma pessoa do mercado de trabalho por ter morrido em um acidente de automóvel, pode ser que não consiga sustentar a ideia de que alguém precisa chegar mais cedo ao trabalho para produzir mais.

Então, num mundo de cientistas com poder político, as leis e regras só existiriam se pudessem ter uma evidência que as apoiasse. Hoje, leis são criadas com base em filosofias políticas, culturais e religiosas próprias e aplicada a todos sem distinção. Essa é a receita certa para um desastre. Para o desmantelamento da civilização.

POR RENATA PETTENGILL