Martin Kunze está criando um instantâneo da nossa vida para seres humanos ou alienígenas do futuro distante, um ladrilho de cada vez.
Redação | 24 de Julho de 2019 às 17:41
Se você fosse construir sua cápsula do tempo, o que gostaria que as pessoas – ou os alienígenas – daqui a um milhão de anos soubessem sobre nós? Que éramos amorosos, belicosos ou pessoas dopadas que viam vídeos virais em série? Como você começaria a representar esta época, vivida por quase 8 bilhões de pessoas?
Para que a cápsula fosse encontrada, que materiais se poderia empregar que durassem tanto tempo? E como guiar os seres do futuro para a cápsula em si, supondo que até lá nosso planeta esteja enterrado em gelo ou areia?
Foi essa visão da Terra daqui a 1 milhão de anos que mudou para sempre a vida de Martin Kunze. Cerca de dez anos atrás, ele leu o livro O mundo sem nós, de Alan Weisman, um exercício intelectual sobre a rapidez com que nosso planeta vai se deteriorar depois de erradicados os seres humanos. Weisman imagina bairros transformados em selvas imensas e casas mofando até que, finalmente, só haja ruínas incoerentes. O mais importante é que o livro ressalta que a cerâmica tem a maior probabilidade de sobreviver, como já sobreviveu desde as antigas civilizações.
Martin teve uma epifania. Ele era ceramista na pequena cidade alpina de Gmunden, na Áustria, e criava vasos e pratos modernos para turistas. E vinha pensando em como os registros escritos de nossa civilização estão cada vez mais na nuvem. “Mais cedo ou mais tarde”, disse Martin quando nos conhecemos em Gmunden, “teremos de apagar dados em massa por motivos econômicos e ecológicos. Esse apagamento não será organizado, não será levada em conta a seleção do que queremos guardar.”
A ideia de criar uma cápsula do tempo começou para Martin como uma postura contra nossa impermanência e como refutação do Grande Apagamento. Ele reuniria e protegeria os dados, documentos e efemérides do momento atual. “Como espécie, somos colecionadores e relembradores. Deixamos nossos vestígios por toda parte”, disse ele. “E pensei: que tal deixarmos algo mais permanente? Como fazer isso?”
Assim, em 2012, o projeto Memória da Humanidade (Memory of Mankind ou MOM) começou em sua oficina. Na primeira placa de cerâmica, ele escreveu uma saudação, explicando que ali está um “projeto de preservação” para proteger o conhecimento de “nossa atual civilização do esquecimento e da amnésia coletiva”. Está datado por eventos astronômicos, pois não se sabe se daqui a muitos milênios saberão ler números. Também há um dicionário ilustrado para que consigam entender nossas letras e palavras.
Ele já tem mais de 600 placas, e cidadãos, estudiosos, especialistas e entusiastas enviam a seu site material para imprimir numa placa. Eles mandam registros feitos em diários e cartas de amor, reportagens de jornal e dissertações obscuras, blogues e textos, nossas partes mais importantes. “O MOM é a primeira história do mundo de baixo para cima”, disse Martin.
Para guardar as placas, ele pensou numa mina de sal local, numa caverna com 4,5 metros de altura, cerca de 1,5 quilômetro no fundo da montanha. A geologia diz que, sobre os cristais de sal, o arquivo subirá lentamente através da montanha até a superfície. Os donos da mina adoraram a ideia.
Não foram os únicos. Claudia Theune, professora de arqueologia da Universidade de Viena, ofereceu informações sobre como tornar o arquivo do MOM mais útil às gerações futuras. Thomas Grill, artista sonoro austríaco e pesquisador, procurou Martin para criar um modo de representar sons esquematicamente numa placa de cerâmica.
Colaborativo por natureza, Martin continuou fazendo contato com linguistas, antropólogos e especialistas espaciais na tentativa de aumentar o alcance de seu arquivo e as chances de sucesso. Logo, passou a ser convidado para conferências: fez um TED Talk em Linz e falou na Conferência FutureFest, em Londres.
Numa tarde escura de novembro, Martin e eu fomos de carro à mina Saltzwelten (Mundos de Sal), na pitoresca aldeia de Hallstatt. Uma das mais antigas minas de sal conhecidas no mundo, ela tem 7 mil anos ou mais. Antigamente, o sal deu à região uma riqueza sem precedentes, por causa de sua importância como conservante, tempero e moeda.
Aparentemente, o pessoal da mina, que ainda funciona, conhecia Martin, que recebeu vários acenos no funicular. No alto da subida, caminhamos por uma neblina densa até uma abertura na montanha e embarcamos num pedaço comprido de madeira polida com bancos de madeira – um veículo motorizado que lembra um bonde. Um mineiro ligou um interruptor e nos lançamos na escuridão, a cabeça quase batendo no teto. Por fim, chegamos a uma caverna iluminada e desembarcamos.
Os chefes de Saltzwelten deram a Martin um canto só dele, onde estão empilhados uns 50 caixotes de placas. As visitas à mina passam pelo local, mas seria fácil não ver nada se não fosse um cartaz na parede para anunciar que esse é o Projeto Memória da Humanidade: “Um sopro de imortalidade para todos.”
À primeira vista, é impossível achar que os caixotes serão encontrados um dia. Mas por que não? Como Martin ressaltou, a história está cheia de cerâmica. Se não fosse por algum Martin do passado e suas placas, não saberíamos que os sumérios amavam cerveja nem conheceríamos a história da matemática.
Martin baixou um caixote e inspecionou as placas, que tilintaram. Algumas tinham imagens, outras texto gravado que era difícil de ler.
O processo de fazer os ladrilhos é relativamente simples: na oficina, Martin passa o arquivo digital por um laser, que grava diretamente na placa com pigmentos especiais para cerâmica. Usando texto super-reduzido, ele consegue pôr até cinco livros de 400 páginas numa placa. O resultado parece uma obra de arte, letras amontoadas que se fundem em linhas densas de picos e vales.
Segundo Martin, os ladrilhos do MOM refletiriam três linhas independentes de informação. A primeira inclui editoriais de jornais do mundo inteiro, com todos os tipos de ponto de vista político e geográfico. Várias empresas de comunicação permitem o fluxo de textos para o arquivo na esperança de criar instantâneos diários de nosso mundo.
A segunda linha é o material institucional: artigos científicos, projetos artísticos e músicas populares, entre outras coisas, recolhidos em universidades e empresas, comitês de premiação e outras instituições. Martin disse que talvez inclua a série Harry Potter.
A terceira linha é o que Martin classifica como pessoal. São histórias, paixões ou homenagens de indivíduos – na verdade, qualquer coisa – doadas por qualquer um. No site do MOM, você pode digitar seus pensamentos mais profundos, que serão transformados numa placa. As pessoas também podem projetar uma placa pessoal, com texto e imagens, e há a opção de receber em casa uma segunda placa igual, mas essas duas opções têm custo. Para incentivar ofertas de vários continentes, Martin cobra uma tabela variável por essas placas pessoais, dependendo do PIB do país. Para alguém do Malawi, o custo é de pouco mais de 2 euros; se for da Suíça, o preço é pouco mais de 300 euros.
As placas vão da doçura à intensidade e ao puro informatiquês. Uma mulher escreveu uma rápida recordação de como um videogame (Undertale) a salvou do suicídio. Um garoto de 17 anos do Brasil documentou a vida de sua família e a vida de Marcos Pontes, o único astronauta brasileiro a voar até a Estação Espacial Internacional. “Adoro seu ponto de vista”, disse Martin. “Sem dúvida, a Nasa faria a documentação sobre voos espaciais de um jeito diferente. Mas o filtro, digamos assim, são os olhos de um garoto de 17 anos com uma grande paixão.”
Martin teme que o MOM pareça aos outros “uma ideia maluca de um artista esquisito”. Ele leva as críticas a sério e vai corrigindo o projeto, tentando equilibrar as três linhas de informação. “Bons artistas e bons cientistas precisam ter uma noção parecida de seu campo”, explicou. “Precisam seguir um caminho fora do normal. Têm de ver novas conexões e desenvolver novas teorias… Acho que o projeto MOM é um cruzamento entre arte e ciência.”
No entanto, para que funcione, o projeto precisa de um lado prático e obstinado. Martin disse que fez “contatos muito fortes” com a Saltzwelten. “Mesmo que vendam a empresa, o próximo dono também é obrigado a manter o MOM lá dentro para sempre”, afirmou.
Para ajudar os seres do futuro a encontrar o arquivo, Martin criou fichas de cerâmica que são um tipo de mapa do tesouro. Inscritas com o contorno da Europa, têm duas linhas que se cruzam na mina de sal de Hallstatt. No outro lado, está gravado o perímetro de um lago próximo e um cubo, que representa tanto um cristal de sal quanto a mina em sua margem. “Imagino que os futuros descobridores terão tecnologia para reproduzir o formato do leito do lago”, disse Martin.
Ele dá as fichas a turistas, colaboradores do MOM, a qualquer interessado, na verdade, e tem um acordo com a Arch Mission Foundation para espalhá-las pelo sistema solar. A ficha levaria os seres até o tesouro de Martin. Então eles veriam como amamos celebridades e reality shows. Conseguiriam acompanhar todas as nossas neuroses e teorias da conspiração (círculos nas plantações! os Illuminati!) e histórias revisionistas, em busca de nossa verdade.
Quer indicar seu livro favorito como um dos 1.000 livros mais inspiradores de todos os tempos? Martin Kunze e sua equipe criaram um site onde os leitores da Reader’s Digest de todo o mundo podem enviar sugestões sobre quais livros devem ser incluídos neste incrível projeto de história humana. No site, você também pode contribuir para financiar a campanha “Thousand Books for a Million Years” (Mil Livros por um Milhão de Anos”). Se você curtiu esse projeto e quer participar, basta clicar aqui para acessar o site oficial.