A vida na Avenida Talfourd é bem diferente das outras ruas de grande cidade. Veja como os moradores transfomaram a vizinhança em uma grande família
Douglas Ferreira | 8 de Novembro de 2020 às 11:00
À primeira vista, é só mais uma via de pequenas casas geminadas elegantesno leste de Reading, cerca de 60 quilômetros a oeste de Londres: Avenida Talfourd. Sim, a rua fica perto da universidade local e de um lago agradável. Mas pode-se dizer o mesmo de muitas outras ruas do bairro.
A primeira pista de que existe algo incomum na Avenida Talfourd talvez seja a grande jardineira na esquina. Como diz uma das crianças que moram ali, “nela há muitas flores diferentes. Qualquer pessoa pode plantar flores ali. Se começarem a morrer, a gente se reúne para regar”.
Uma jardineira comunitária? Vizinhos fazendo coisas juntos? Embora as novelas britânicas mostrem um país de famílias que se encontram regularmente, a realidade é outra. Mas na Talfourd, como gostam de dizer os moradores, não é assim. Confira como os moradores transfomaram sua rua em uma família.
“Eu me lembro de quando nos mudamos para cá. Logo ficou claro que as pessoas eram amistosas”, conta Jane, que trabalha para o governo britânico. “Quando viemos morar aqui, várias pessoas apareceram, conversaram conosco e nos perguntaram quem éramos. Eu nunca tinha visto isso!”, diz a web designer Karly.
“Descobri como era esta rua em nosso primeiro Natal. Um coral veio à nossa porta e cantou “Away in a Manger”. Achei que fosse para angariar fundos para caridade, mas não; eles estavam ali pela alegria de cantar e compartilhar”, diz Rachel, que trabalha na Universidade Reading.
E há mais na Talfourd do que o espírito das boas-vindas. Vejamos o caso de Marion e Simon. Em certo Natal, Marion fraturou a perna; pouco depois, Simon caiu de uma escada e quebrou o pé.
Ambos ficaram incapacitados, dificultando que cuidassem de si e dos três filhos. Assim, os vizinhos ajudaram de várias maneiras: levaram seus filhos para a escola, lavaram o cabelo de Marion, fizeram as compras etc.
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“Nós os ajudamos por uns três ou quatro meses”, diz Nicola, fonoaudióloga. “Aqui as pessoas fazem muitos favores aos outros. Quando converso com os amigos sobre a rua, eles dizem: ‘Caramba, queria morar num lugar tão amistoso assim.’ Mas há quem ache uma péssima ideia. Meu irmão disse que detestaria morar num lugar onde todos conhecem todo mundo e não há anonimidade. Mas não acho opressivo. Cada um leva a sua vida.”
Ninguém sabe direito quando a Talfourd se tornou um exemplo de boa vizinhança, mas parece que foi há décadas. Chris, professor aposentado, se mudou com a mulher, Sue, em 1988. Já naquela época a rua era conhecida pelo espírito comunitário.
“Sue decidiu que, de todos os lugares do mundo, ela queria morar aqui, por causa do ótimo relacionamento entre as pessoas”, diz Chris. “É óbvio que muita gente mais velha que conhecemos quando nos mudamos já se foi, mas, no mínimo, esse espírito se desenvolveu mais. A geração seguinte realmente levou a coisa adiante.”
E levou mesmo. Nos últimos anos, vários eventos foram instituídos no calendário da Talfourd. Há o Grande Almoço, uma festa anual na rua que ocorre no verão; a Talfest, um minifestival de música que apresenta artistas locais; uma excursão de ônibus até a praia; um piquenique num parque próximo; um cineclube; um coral que canta na rua; e o Playing Out, em que a rua é fechada ao tráfego para que as crianças (e os adultos) possam brincar.
Parece o resultado de reuniões regulares de um comitê, mas na verdade é tudo bem solto. Quanto à organização, uma carta é enviada a todos os moradores uma vez por ano para marcar os eventos principais e pronto. Qualquer um pode propor novas atividades, se quiser, e em geral o público é receptivo.
“Somos uma rua bem incomum, mas de um jeito bom”, afirma Rachel, uma das principais organizadoras da Talfourd. “Há uma boa mistura de gente morando aqui, e quase todos se envolvem de um modo ou outro, mas nem todo mundo se envolve em tudo.”
“Não ficamos grudados uns nos outros o tempo todo”, diz Rick, que trabalha com ar-condicionado. “E não somos todos parecidos. Mas o entusiasmo é real. Sempre que alguém dá uma sugestão, as pessoas respondem: ‘Vamos!’”
Será que todos poderíamos ser um pouco mais como a Talfourd? Rachel acha que sim. “Mesmo que você só faça um Grande Almoço uma vez por ano ou um Playing Out, experimente”, sugere ela. “O resto vai crescer a partir daí.”
E para onde vai a Talfourd no futuro? Novos eventos serão acrescentados ao calendário e fala-se até em conectá-la com outras ruas. Alguém disposto?
Jan: “O primeiro Grande Almoço foi em 2009, depois que meu marido Andrew leu sobre uma iniciativa para estimular as pessoas a fazerem festas na rua. Achamos que poderíamos preparar um almoço nos lotes próximos para os vizinhos. Recebemos cerca de 36 pessoas naquele dia e decidimos que valia a pena repetir o evento.
“No ano seguinte, acabamos nos reunindo na calçada diante de nossa casa. Em 2011, a Câmara municipal começou a conceder o fechamento gratuito das ruas, e assim fizemos um abaixo-assinado e apresentamos a solicitação. Pouco depois Andrew morreu, e ficou a dúvida se o evento deveria ocorrer. Achei que era fundamental que acontecesse, e acabou sendo ainda maior do que esperávamos. Nos anos seguintes, o evento se transformou no ponto alto de nosso calendário social. É o tributo mais maravilhoso a Andrew.”
Chris: “Sempre começa com o que considero a comédia da montagem da tenda. Três irmãos moram com suas famílias na rua, e um deles tem uma tenda enorme, e a primeira coisa que acontece depois que a rua é fechada ao meio-dia é que eles saem com todas as partes da tenda e a montam. Aí as pessoas trazem mesas e cadeiras, e a lona começa a subir. Há um sistema de som, e quem toca traz seu instrumento. Todos se responsabilizam pela comida, que é posta na mesa e dividida. São cerca de cem pessoas, todas juntas.”
Nicola: “Somos 16 moradores envolvidos, e fazemos as projeções há oito anos. Parece um clube de leitura. Há um revezamento de anfitriões, e o anfitrião é responsável pela escolha do filme que assistimos juntos. Geralmente há bebidas, e as pessoas fazem petiscos bem elaborados.
“Tendemos a assistir a muitos filmes estrangeiros, alguns do tipo que faz pensar, embora nem sempre. Os pontos baixos incluíram um filme islandês chamado A ovelha negra, que a mulher da outra rua disse que era muito engraçado, mas era sobre ovelhas doentes e dois irmãos fazendeiros que tinham brigado. Foi o filme mais deprimente a que já assistimos.
“Entre os pontos altos estão Pequena Miss Sunshine, um filme alegre o tempo todo, e um filme alemão sobre um professor que decide mostrar aos alunos como é viver num regime totalitário. No aniversário de 70 anos de Sue, assistimos a um filme preto e branco de 1946 chamado Neste mundo e no outro, que foi extraordinário.”
Karly: “No primeiro ano foram só Simon e Hilary, dois músicos profissionais que moravam na rua, que tocaram, e todo mundo trouxe comida. Foi como uma festa na rua, mas com música. Só chamamos de Talfest no segundo ano. Sinceramente, ficamos até com vergonha do nome!”
Jane: “Fizemos no quintal. Abrimos as portas do pátio e tiramos os painéis da cerca entre a nossa casa e a de Karly. O evento cresceu demais nos últimos cinco anos. No último, começamos com alguns garotos da rua, de 13 ou 14 anos, com seu grupinho. Depois houve um grupo de cavaquinhos, Simon e Hilary outra vez, um sujeito que canta e toca acordeão e que tem um talento incrível e muito mais.
“Devem ter vindo umas 120 pessoas. A música acaba às dez da noite, porque não queremos incomodar os vizinhos da outra rua, mas todo mundo fica até as três da manhã.”
Rachel: “Começou em outubro de 2013. Mamãe viu uma reportagem num jornal sobre o movimento comunitário Playing Out e disse: ‘Olha, vocês podiam fazer isso em sua rua.’ Com o apoio de alguns vizinhos, pedi permissão à Câmara para fechar a rua.
“O evento acontece todo segundo sábado do mês. Colocamos as caçambas de lixo com rodas no alto da rua e placas especiais de ‘rua fechada’. Os veículos ainda podem passar, mas precisam ser escoltados por alguém andando na frente do carro com um apito; temos voluntários que concordam em ficar nas duas extremidades para servirem de acompanhantes.
“A ideia é dar um pouco mais de liberdade às crianças, além dos benefícios para a saúde de todos. Às vezes temos um tema, como o Dia dos Namorados ou o Dia de Assar Bolos. Nunca brinquei na rua quando criança, meus pais não deixavam.”
Rick: “Fizemos pela primeira vez em julho do ano passado. A ideia surgiu quando estávamos no bar. Quando eu era garoto, fazíamos viagens até a praia, e disse a um colega: ‘Que tal se alugássemos um ônibus?’ E ele respondeu: ‘Que ótimo!’
“Então mandamos um e-mail – a concordância foi quase unânime –, e 49 pessoas e um cachorro foram passar o dia em Bournemouth. O ônibus nos pegou às nove da manhã, e todos fizemos um piquenique na praia.
“O tempo estava horrível, ficamos todos encasacados, mas mesmo assim metade entrou na água. Às cinco, voltamos ao ônibus e chegamos aqui às seis e meia. É claro que vamos fazer de novo este ano.”