Durante uma escalada, Doug April e Ian Cappelle se viram cercados por abelhas. E, de alguma forma, sobreviveram. Leia essa história completa.
Rayane Santos | 9 de Outubro de 2021 às 12:00
Os montes rochosos de Hueco Tanks se erguem dramaticamente acima do árido deserto de Chihuahuan, no oeste do Texas: quatro massas de sienito erodido que há muito tempo são um paraíso para os montanhistas.
Em maio de 2015, Doug April estava encerrando um período de seis meses como anfitrião de acampamento do Parque Estadual de Hueco Tanks, morando sozinho numa motocasa. Magro, de 36 anos, ele era divorciado e tinha três filhos, o mais novo no segundo segmento do ensino fundamental. Servira dois turnos no Iraque, onde viu muita coisa difícil de esquecer. Durante tudo aquilo, escalar fora um refúgio. Nas rochas, ele conseguia desligar a mente, que não parava de zumbir, e só se concentrar no que estava à frente.
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Agora, esse alívio chegava ao fim. April saíra oficialmente do exército três semanas antes, indo para a reserva como major, mas não saíra da zona de guerra. Dali a poucas semanas, partiria para passar três meses no Afeganistão em missões de reconhecimento aéreo como particular contratado. Ele queria aproveitar ao máximo seus últimos dias de escalada.
Por volta das oito da manhã, Ian Cappelle, parceiro de escalada de April, parou no acampamento. O geólogo de 38 anos se mudara para El Paso com a mulher, Malynda, cinco anos antes. Pouco depois, enquanto escalava, conheceu April. Os dois ficaram amigos desde então.
Robusto e barbado, Cappelle não tinha aparência de montanhista. Mas, assim que tentou o esporte, ficou viciado. Via April como um irmão mais velho, um montanhista experiente e professor generoso.
– O que faremos hoje? – perguntou April enquanto embalavam as cordas naquela manhã.
– Bom, você já subiu duas vezes a Indecent Exposure – disse Cappelle. – Gostaria de tentar essa rota.
April fez uma pausa. A trilha Indecent Exposure (“exposição indecente”) sempre lhe causava ansiedade. Não era a mais difícil de Hueco Tanks, mas talvez fosse a que mais intimidava.
Tinha duas “enfiadas” ou seções, as duas com trechos que deixavam a pessoa pendurada sobre grandes abismos de 75 metros sem proteção. No meio da rota, havia uma placa em memória de um aluno da Universidade do Texas em El Paso que morrera na tentativa.
Mas, quando a escalada será uma das últimas por muito tempo, é bom que seja memorável.
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O dia estava bonito. O sol estava certo; a brisa, perfeita. Se Cappelle concordasse em liderar a primeira parte da subida, April disse que lideraria a segunda.
Cappelle subiu à sua direita, os dedos cobertos de giz procurando os apoios do penhasco. Por segurança, ele e April estavam amarrados um ao outro, ligados por dois cabos com dispositivos blocantes nos arneses que atuariam como freio, segurando a corda esticada caso algum deles caísse.
Enquanto encabeçava o caminho, Cappelle prendia a corda em âncoras de metal presas à face de pedra como proteção. Com vinte minutos de escalada, ele viu a placa e, em silêncio, prestou sua homenagem. Chegou à saliência que marcava o fim da enfiada e se prendeu a uma âncora. April veio depois, e eles pararam por um momento para descansar a quarenta metros do chão.
April liderou a segunda enfiada. A parte mais difícil vinha logo no começo: um passo enorme para a direita, seguido por alguns metros de bordas estreitas para a ponta dos dedos das mãos e dos pés. Ele teve dificuldade nesse trecho em tentativas anteriores, mas dessa vez deu tudo certo e ele chegou a um pedaço de pedra do tamanho de uma geladeira.
“Caramba, isso foi demais!”, gritou ele, ecoando pelo abismo, uns 2 metros acima e 8 metros à direita do parceiro. Em seguida: “Que esquisito. De onde vieram todos esses insetos?” April deu um tapa na nuca. Olhou para baixo e, no momento seguinte, observou com terror uma nuvem de abelhas sair girando da rocha – mais abelhas do que nunca vira, como numa cena de filme de terror. O enxame o envolveu num instante, picando-o várias vezes, a dor se espalhando pelo pescoço, rosto e corpo.
Em geral, as abelhas normais são territoriais, mas as africanizadas são muito mais agressivas. Elas chegaram ao hemisfério ocidental em 1956, quando abelhas-africanas introduzidas no Brasil para aumentar a produção de mel escaparam, cruzaram com abelhas-europeias e logo se espalharam pelas Américas.
Quando sentem uma ameaça, as abelhas africanizadas não mandam só algumas abelhas para o combate; mandam hordas e perseguem a pessoa por até 400 metros até a ameaça ser eliminada. Quem for picado mais de mil vezes, estimam os cientistas, tem 50% de probabilidade de morrer. Desde a década de 1950, enxames de abelhas africanizadas foram responsáveis por mais de mil mortes; há uma razão para serem chamadas de “abelhas assassinas”.
Um momento depois de as abelhas enxamearem, Cappelle observou com horror April pular da plataforma, sentindo o tranco da tensão no arnês quando o peso do parceiro tensionou a corda. “Me baixe, me baixe, me baixe, rápido, rápido, rápido!”, berrava April.
De seu poleiro, uma saliência estreita com cerca de um metro de largura e só meio metro de profundidade, Cappelle deu todos os 60 metros de corda, puxando-a pelo dispositivo blocante o mais depressa possível. Abaixo dele, a parede recuava da saliência onde estava, e April sumiu.
Foi quando Cappelle avistou a primeira abelha vir em sua direção. Ele ficou o mais imóvel possível, imaginando que, se a ignorasse, ela iria embora. Em vez disso, ela voou diretamente para ele e o picou no pescoço. Então as picadas foram rápidas – uma, duas, três, quatro, depois um crescendo de dor quando o grosso da colmeia o atacou. Cappelle tentou cobrir o rosto, o gemido agudo afogando tudo enquanto as abelhas atacavam orelhas, olhos, nariz e boca.
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Sua mente disparou quando as abelhas o picaram. Por que Doug não se soltou quando chegou ao chão? Se ele se soltasse, Cappelle poderia puxar a corda, ancorar-se na parede e descer de rapel para lugar seguro. Mas April ainda estava lá pendurado, um peso morto na ponta da corda.
Cappelle se levantou na saliência estreita e tomou um pouco da água que levava na garrafa, desesperado para se manter hidratado e evitar o efeito do veneno. O que faço? O que faço? Ele estendeu a mão para afastar as abelhas da cabeça e sentiu um halo de insetos com mais de 2 centímetros de espessura, picando-o sem parar. Ligue para sua mulher, pensou ele. Diga-lhe que a ama. E se ele deixasse o celular cair?
As toxinas fluíram pela corrente sanguínea. Em certo momento, os pensamentos em pânico pararam, substituídos por uma estranha sensação de calma. Era um jeito horrível de morrer. Ele ficou triste porque Malynda o perderia assim, mas não havia o que pudesse fazer. O mundo se encolheu à sua volta, espremendo-se numa picada de alfinete, e Cappelle desmaiou, amolecendo sobre a saliência rochosa.
Abaixo dele, April pendia suspenso no ar, a 2 metros da parede e a uns 20 metros do chão. Ficou preso dessa maneira durante uns dez minutos, e as abelhas não pararam de picar.
“Solte a corda azul!”, berrou para Cappelle. Queria que o parceiro usasse uma das cordas para descer de rapel até o chão. Mas nenhum deles conseguia ouvir o outro. Tudo o que ouviam era o zumbido ensurdecedor.
Depois de tantas picadas, o corpo de April começava a ficar amortecido pela dor. Ele sentia as abelhas subindo por ele, mas as picadas mal se registravam. Uma delas voou para dentro da boca, vibrante e móvel, com um sabor levemente floral, e ele logo a cuspiu.
Depois de mais de uma dúzia de picadas, as pessoas podem sentir vertigem, náusea e até convulsões e desmaio. April fora picado centenas de vezes. Ele puxou o boné sobre o rosto e tentou pensar.
Sempre fora capaz de manter a calma em situações ruins. Caiu de helicóptero durante o treinamento e viu homens morrerem em combate. E, qualquer que fosse o perigo, ele sempre conseguia desligar um interruptor no cérebro. Desligue o medo. Concentre-se no que precisa ser feito.
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O que precisava ser feito agora era claro: ele tinha de descer. A montanha era cheia de rotas de escalada; ele só precisava encontrar uma. A uns 5 metros, avistou uma âncora que fazia parte de outra rota. Ele balançou até chegar lá, pegou-a na terceira tentativa e se prendeu. Depois, soltou as cordas presas a Cappelle, deixando-as penduradas ao vento.
Num dia bom, não seria uma rota tão difícil, mas aquele não era um dia bom. Ele estava cheio de veneno de abelha, o corpo em chamas e a mente oscilando. Com cuidado, foi escolhendo o caminho para descer.
A descida lhe tomou uns cinco minutos, mas pareceu eterna. Quando chegou ao chão, April estava nauseado e quase delirante. Foi aos tropeços até a estrada bem na hora que um dos guardas do parque parava.
“Ian”, ofegou April, apontando o penhasco. Ele e o guarda chamaram o nome de Cappelle. Conseguiam vê-lo na saliência. Ele estava em posição fetal, uma nuvem imensa de abelhas em volta. “Ian!”, gritou April de novo. O amigo não se mexeu.
April fez as contas na cabeça. Alguém já chamara o serviço de busca e resgate, que levaria cerca de uma hora para chegar com uma equipe de El Paso. E para conseguir uma equipe que subisse em segurança até Cappelle e o removesse? Montanhistas que não conhecessem a área precisariam de mais algumas horas. Provavelmente, Cappelle não tinha todo esse tempo.
April sabia o que tinha de fazer. “Me leve de volta a meu carro”, pediu ao guarda. “Tenho outra corda lá. Vou buscá-lo.”
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April subiu pelas rochas o mais depressa que pôde. Tinha decidido seguir por uma rota diferente, pelo outro lado da montanha, e descer de rapel até Ian. Estava com o rádio do guarda do parque e com uma tela que pôs sobre o boné.
A meio caminho da trilha, encontrou dois outros amigos de escalada e os recrutou para o plano de resgate. Quando chegaram ao topo, tinham se passado uns 45 minutos desde o início do ataque, e April não sabia se o amigo estava vivo ou morto.
Mesmo nauseado, não lhe passou pela cabeça pedir a um dos colegas que descesse em seu lugar. Era o parceiro dele que estava lá; seria ele a descer e buscá-lo. April pôs uma âncora na borda do penhasco e se prendeu. Um dos outros montanhistas começou a lhe dar corda.
Nos primeiros 15 metros, ele não conseguiu ver Cappelle. E então, finalmente, o penhasco tornou-se íngreme o suficiente para que April pudesse ver o parceiro, ainda imóvel, envolto por um cobertor turbilhonante de abelhas. “Ian!”, gritou. Dessa vez, Cappelle olhou para cima.
“Ele tinha o mesmo olhar que vi tantas vezes em combate quando alguém era atingido ou explodia”, recorda April. Não é medo, exatamente; é mais um olhar de pura incredulidade. Por que diabos isso me aconteceu? “Foi como ele me olhou. Depois, baixou a cabeça de novo.”
April desceu até a saliência. As abelhas o cobriram de novo, mas agora ele estava totalmente amortecido para elas. Prendeu Ian ao dispositivo blocante. “Vou tirar você daqui”, disse ele. Cappelle só estava consciente o bastante para seguir as instruções simples de April, enquanto April o baixava cuidadosamente por 40 metros até o chão. Lá embaixo, a primeira ambulância tinha acabado de chegar.
April observou os guardas e paramédicos recolherem Cappelle. Depois, baixou-se o mais depressa que pôde. Quando chegou ao chão, Cappelle estava num helicóptero para ser levado ao hospital de El Paso. Só então a equipe de busca e resgate chegou.
April recusou o conselho dos paramédicos de ir para o hospital. Embora se sentisse fraco, não acreditava que fosse morrer em breve.
No estacionamento, encontrou dois montanhistas que tinham treinamento de primeiros socorros em área selvagem. April se despiu até ficar de cuecas. Eles lhe disseram que a melhor maneira de remover os ferrões não era com pinças, que espremem no corpo o veneno dos saquinhos. Os dois usaram seus cartões de crédito para raspá-lo, arrancando centenas de ferrões, que caíram na areia do deserto.
No hospital, os médicos estimaram que Cappelle foi picado mais de mil vezes, uma dose alta o bastante para ser fatal. Ele teve sorte. E, com um dia ou dois para eliminar o veneno, ficaria bom.
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Meses depois, quando April voltou do Afeganistão, os dois planejaram uma escalada em Hueco Tanks.
Usaram uma rota diferente dessa vez, e toda perturbação que poderiam sentir por estar lá se dissipou no ar fresco de outro dia perfeito. Eles chegaram a uma pequena alcova bem acima do deserto e se sentaram para descansar.
Nos meses decorridos desde o ataque, Cappelle teve muito tempo para pensar sobre o que poderia ter acontecido se April não voltasse para buscá-lo naquele dia. Sua única lembrança depois de desmaiar é o vislumbre de um tapete espesso de abelhas mortas cobrindo a saliência no penhasco e então, entrando no seu campo de visão, os tênis vermelhos de April.
Na saliência, ele tentou dizer a April o quanto se sentia agradecido pelo que o outro fizera, mas o amigo deixou claro que não tinha feito nada demais. Não fora nem mesmo uma escolha. “Não havia como ele não tentar me ajudar”, diz Cappelle.
Os dois ficaram apreciando a vista. Os Montes Franklin ficavam a oeste, nebulosos e indistintos. Ao norte, a 140 quilômetros, dava para ver o leve contorno dos Montes Sacramento contra um céu que parecia interminável. O sol estava certo; a brisa, leve. Eles tornaram a se levantar, a corda forte e segura conectando os dois, e voltaram pela pedra.