A escrava secreta da família: a história de Lola Pulido

"Lola tinha 18 anos quando meu avô a deu de presente para minha mãe. Durante 56 anos, ela trabalhou em nossa casa." Conheça essa história!

Redação | 31 de Janeiro de 2022 às 14:00

© ALAN BERNER -

As cinzas enchiam uma caixa de plástico do tamanho de uma torradeira. Eu a acomodei em minha mala em julho passado para o voo até Manila, nas Filipinas. De lá, eu iria até uma aldeia para devolver tudo o que restara da mulher que passou 56 anos como escrava da minha família.

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Seu nome era Eudocia Tomas Pulido. Nós a chamávamos de Lola. Media 1,50 metro, tinha a pele morena e os olhos amendoados. Estava com 18 anos quando meu avô a deu de presente para minha mãe e, quando minha família se mudou para os Estados Unidos, nós a trouxemos conosco. Ela preparava três refeições por dia, limpava a casa, servia a meus pais e cuidava de mim e dos meus quatro irmãos. Meus pais nunca lhe pagaram um salário e brigavam com ela constantemente. Ela não usava correntes nas pernas, mas era como se usasse.

Para nossos vizinhos americanos, éramos imigrantes-modelo. Meu pai era formado em Direito, minha mãe estudava Medicina, eu e meus irmãos tirávamos boas notas. Nunca falávamos de Lola. Nosso segredo afetava a essência do que éramos e, pelo menos para nós, crianças, do que queríamos ser.

Depois que minha mãe morreu, em 1999, Lola veio morar comigo numa cidadezinha ao norte de Seattle. Eu tinha família, uma carreira, casa no subúrbio: o sonho americano. E tinha uma escrava.

O início da jornada de Lola

Ao recolher a bagagem em Manila, abri a mala para me assegurar de que as cinzas de Lola ainda estavam lá. Na rua, inspirei o cheiro conhecido: uma mistura de lixo e escapamento dos automóveis, mar, frutas e suor.

Na manhã seguinte, bem cedo, achei um motorista, um homem afável de meia-idade, cujo apelido era “Doods”, e pegamos a estrada em sua picape.

Íamos ao lugar onde a história de Lola começou, na província de Tarlac, ao norte. A terra do arroz. O lar de um tenente do exército que gostava de charutos, chamado Tomas Asuncion, meu avô. As histórias da família pintam o tenente Tom como um homem formidável que tinha muitas terras mas pouco dinheiro e sustentava amantes em casas separadas em sua propriedade. Sua mulher morrera no parto da única filha, minha mãe. Ela fora criada por uma série de utusans, ou “pessoas que recebem ordens”.

Lola Pulido (na foto do passaporte) cresceu na zona rural das Filipinas. (Imagem: cortesia de Melissa Tizon)

A escravidão tinha uma longa história nas ilhas. Antes da chegada dos espanhóis, os ilhéus escravizavam outros ilhéus, geralmente prisioneiros de guerra, criminosos ou devedores. Alguns escolhiam a servidão em troca de comida, abrigo e proteção.

Quando chegaram no século 16, os espanhóis escravizaram os ilhéus e depois levaram para lá escravos africanos e indianos. A Coroa espanhola acabou abolindo a escravidão, mas as tradições persistiram, mesmo depois que os EUA assumiram o controle das ilhas em 1898. Hoje, até os pobres podem ter utusans, katulongs (“ajudantes”) ou kasambahays (“domésticos”), desde que haja pessoas ainda mais pobres. A miséria é enorme.

Para sempre

Na primavera de 1943, com as ilhas sob ocupação japonesa, o tenente Tom levou para casa uma mocinha de uma aldeia próxima. Era prima de um lado desprivilegiado da família, plantadores de arroz. Tom lhe fez uma oferta: ela receberia comida e abrigo caso se comprometesse a tomar conta de sua filha, que acabara de fazer 12 anos. Lola concordou, sem entender que aquilo era para o resto da vida.

– Ela é meu presente para você – disse o tenente Tom para minha mãe.

– Não quero – respondeu mamãe, sabendo que não tinha escolha.

O tenente Tom foi combater os japoneses e deixou mamãe com Lola na província. Lola alimentou, limpou e vestiu minha mãe. À noite, quando as outras tarefas de Lola terminavam – alimentar os cães, varrer o chão, dobrar a roupa lavada –, ela se sentava na beira da cama de minha mãe e a abanava para que dormisse.

Certo dia, o tenente Tom pegou minha mãe mentindo – algo sobre um garoto com quem ela não podia falar. Tom, furioso, ordenou que ela “viesse até a mesa”. Com voz trêmula, mamãe disse ao pai que Lola receberia o castigo. Sem dizer palavra, Lola foi até a mesa de jantar e segurou na borda. Tom ergueu o cinto e deu 12 vergastadas, marcando cada uma com uma palavra. Não. Minta. Para. Mim. Não. Minta. Para. Mim. Lola não emitiu nenhum som.

Minha mãe, ao contar essa história ria mais tarde, tinha prazer com o absurdo da coisa, e sua voz parecia dizer: Dá para acreditar que fiz isso? Quando contei a Lola a versão de mamãe, ela me olhou com tristeza e simplesmente disse: “É. Foi assim.”

Lola aos 27 anos com Arthur, irmão mais velho do autor, antes de ir para os EUA. (Imagem: cortesia de Melissa Tizon)

Grandes mudanças

Em 1950, mamãe se casou com meu pai e se mudou para Manila, levando Lola com eles. O tenente Tom vinha sendo perseguido por demônios havia tempo, e, em 1951, calou-os com uma bala calibre 32 na têmpora. Mamãe tinha seu temperamento – instável, autoritária, secretamente frágil – e sabia de cor as lições recebidas, entre elas o jeito certo de ser uma matrona da província: é preciso manter em seu lugar os que estão abaixo de você, para o bem deles e o bem da casa. Eles a amarão por ajudá-los a ser o que Deus quis para eles.

Meu irmão Arthur nasceu em 1951. Vim logo depois, seguido por mais três irmãos. Enquanto Lola cuidava de nós, meus pais foram estudar e se formaram. Então ofereceram um emprego a papai como analista comercial do Ministério do Exterior. O salário era pequeno, mas o cargo era nos Estados Unidos – lugar com que ele e mamãe cresceram sonhando, onde tudo o que esperavam poderia se realizar.

Papai pôde trazer a família e uma doméstica. Mamãe informou a Lola e, para sua grande irritação, Lola não concordou de imediato. Anos depois, Lola me disse que ficou apavorada. “Era longe demais”, falou. “Talvez sua mãe e seu pai não me deixassem voltar para casa.” No fim, o que convenceu Lola foi a promessa de meu pai de que a situação seria diferente nos Estados Unidos. Ele lhe disse que, assim que se instalassem, ele e mamãe lhe dariam uma “mesada”. Lola poderia mandar dinheiro a seus parentes na aldeia. Os pais dela moravam numa cabana com chão de terra. Lola poderia lhes construir uma casa de concreto.

Lola nunca recebeu aquela mesada

Pousamos em Los Angeles em 12 de maio de 1964. Eu tinha 4 anos, novo demais para questionar o lugar de Lola na família. Mas, conforme crescíamos, eu e meus irmãos passamos a ver o mundo de outra forma.

Ela perguntou sobre isso a meus pais quando sua mãe adoeceu com disenteria e a família não tinha dinheiro para os remédios necessários. “Como pode perguntar uma coisa dessas?”, disse meu pai. “Você está vendo a dificuldade de nossa situação. Não tem vergonha?”

Em nossa casa, Billy tinha vislumbres do segredo da família. “Por que ela estava sempre trabalhando?”, perguntava.

Meu pai foi transferido do consulado geral de Los Angeles para o consulado filipino em Seattle. Recebia 5.600 dólares por ano. Arranjou um segundo emprego limpando trailers e um terceiro como cobrador de impostos. Mamãe foi trabalhar como auxiliar médica. Mal os víamos.

Mamãe chegava e ralhava com Lola por não limpar a casa direito ou por esquecer de buscar a correspondência. “Eu já não falei que quero as cartas aqui quando chegar em casa?”, reclamava, a voz venenosa. “Até um idiota se lembraria.”

As dura realidade de Lola

Às vezes, meus pais provocavam Lola até que ela chorasse. Aquilo me confundia. Meus pais eram afetuosos conosco num momento e cruéis com Lola no momento seguinte. Eu tinha 11 ou 12 anos quando comecei a ver com clareza a situação de Lola. Arthur, oito anos mais velho do que eu, apresentou a palavra “escrava” ao meu entendimento do que Lola era. “Conhece alguém tratado do jeito que ela é tratada?”, perguntou ele.

Arthur resumiu a realidade de Lola: não recebia salário. Trabalhava todo dia. Era repreendida por ficar tempo demais sentada ou dormir cedo. Apanhava se respondia. Comia sozinha sobras e restos na cozinha. Não tinha amigos nem passatempos fora da nossa família.

Certa noite, quando descobriu que minha irmã Ling, que tinha 9 anos na época, não jantara, papai ralhou com Lola por ser preguiçosa. “Tentei lhe dar o jantar”, disse Lola. Sua débil defesa só o deixou mais zangado, e ele a socou pouco abaixo do ombro. Lola saiu correndo da sala, e a ouvi chorando, um grito animal.

“Ling disse que não estava com fome”, falei. Meus pais se viraram para me olhar. Nos olhos de mamãe havia uma sombra de algo que eu nunca vira. Ciúmes?

“Está defendendo sua Lola?”, perguntou meu pai. Eu tinha 13 anos. Era minha primeira tentativa de defender a mulher que passava seus dias cuidando de mim. A mulher que me embalava para dormir quando eu era bebê e, à medida que eu crescia, me vestia, me alimentava, me levava à escola pela manhã e me buscava à tarde.

Ouvi-la chorando me deixou louco.

Segredo vergonhoso

Meus pais tomavam o máximo cuidado para esconder o modo como tratavam Lola. Quando havia visitas, eles a ignoravam ou, se interrogados, mentiam e logo mudavam de assunto. No norte de Seattle, morávamos diante dos Misslers, uma família barulhenta de oito pessoas.

– Quem é aquela senhorinha que fica na cozinha? – perguntou certa vez Big Jim, o patriarca dos Misslers.

– Uma parenta de nossa terra – disse papai. – Muito tímida.

Billy Missler, meu melhor amigo, não acreditou. Ele passava tempo suficiente em nossa casa para ter vislumbres do segredo da família.

– Por que ela está sempre trabalhando? – perguntou ele certa vez.

– Ela gosta de trabalhar – respondi.

– Seu pai e sua mãe, por que gritam com ela?

– Ela não ouve direito…

Admitir a verdade significaria expor todos nós. Passamos nossa primeira década no país aprendendo os costumes da nova terra. Ter uma escrava me deu sérias dúvidas sobre o tipo de gente que éramos. Se merecíamos ser aceitos. Havia outra razão para o segredo: os documentos de Lola tinham expirado em 1969. Depois de uma série de problemas com seus superiores, papai saiu do consulado e declarou sua intenção de ficar nos Estados Unidos. Ele conseguiu a permanência da família, mas não de Lola. Ele teria de mandá-la de volta.

Um duro período

Fermina, mãe de Lola, morreu em 1973; Hilario, seu pai, em 1979. Nas duas vezes, ela ficou desesperada para voltar para casa. Nas duas vezes, meus pais disseram “Sentimos muito”. Estavam sem dinheiro, estavam sem tempo. Meus pais também temiam por si, admitiram mais tarde. Se as autoridades descobrissem sobre Lola, meus pais teriam problemas e talvez até fossem deportados.

A demissão do meu pai deu início a um período turbulento. O dinheiro diminuiu ainda mais, e meus pais passaram a brigar. A família se mudou de Seattle para Honolulu, voltou a Seattle, foi para o sudeste do Bronx e, finalmente, para Umatilla, lugarejo no Oregon, com 750 habitantes. Mamãe costumava trabalhar em turnos de 24 horas, primeiro como estagiária, depois como residente. Papai passava dias sumido, em empregos temporários mas também (soubemos depois) com amantes.

O autor (segundo a partir da esquerda) com os pais, os irmãos e Lola nos EUA. (Imagem: cortesia de Melissa Tizon)

Durante dias, Lola era o único adulto da casa. Levávamos amigos para brincar, e ela nos escutava conversando sobre a escola, meninas, meninos e o que nos passasse pela cabeça.

Quando eu tinha 15 anos, papai largou a família. Mamãe só tiraria sua licença de médica no ano seguinte, e sua especialidade – medicina interna – não era muito lucrativa. Papai não pagava pensão, e o dinheiro era sempre curto.

Mamãe se aguentava o suficiente para trabalhar, mas à noite se entregava ao desespero e às lágrimas. Sua principal fonte de consolo nessa época: Lola. Tarde da noite, eu encontrava as duas na bancada da cozinha, contando histórias sobre papai, às vezes rindo com malícia, às vezes furiosas com suas transgressões.

Doods cantarolava

Cochilei por um tempo que pareceu um minuto e acordei com sua melodia alegre. “Mais duas horas”, disse ele.

O fato de ele não saber nada sobre o propósito de minha viagem era um alívio. O diálogo que eu travava comigo mesmo já era suficiente. Eu não era melhor do que meus pais. Poderia ter feito mais para libertar Lola. Por que não fiz? Poderia ter denunciado meus pais, acho. Poderia ter destruído minha família. Em vez disso, eu e meus irmãos guardamos o segredo.

Doods e eu passamos por uma região linda. As montanhas corriam paralelas à estrada, nos dois lados, os Montes Zambales a oeste, a Sierra Madre a leste. De crista a crista, de oeste a leste, eu via todos os tons de verde.

Doods apontou para o contorno sombreado do monte Pinatubo. Eu estivera lá em 1991 para fazer uma reportagem sobre sua erupção, a segunda maior do século 20. O fluxo de lava vulcânica chegou ao fundo do sopé da província de Tarlac, onde os pais de Lola passaram a vida inteira e onde ela e minha mãe tinham morado juntas. Muita coisa do registro de minha família havia se perdido nas guerras e enchentes, e agora existiam partes enterradas sob seis metros de lama.

A defesa de Lola

Alguns anos depois da separação de meus pais, mamãe se casou com um imigrante croata chamado Ivan, que conheceu por meio de uma amiga. Ivan havia se casado quatro vezes e era um jogador inveterado que adorava ser sustentado por mamãe e servido por Lola.

O casamento foi instável desde o começo, e o dinheiro – principalmente o uso que ele fazia do dinheiro de minha mãe – era o principal problema. Certa vez, numa discussão em que mamãe chorava e Ivan berrava, Lola ficou entre os dois e, com firmeza, disse o nome dele. Ele olhou Lola, piscou e sentou-se.

Ivan pesava uns 110 quilos, e Lola o pôs em seu lugar com uma única palavra. Vi isso acontecer outras vezes, mas, na maior parte do tempo, Lola servia a Ivan sem questionar. Eu tinha dificuldade em ver Lola se submetendo a alguém como Ivan.

Mas o que preparou o cenário de minha explosão com mamãe foi algo mais mundano.

O estopim

No fim da década de 1970, os dentes de Lola começaram a cair. Fazia meses que ela vinha dizendo que sua boca doía. “Isso é o que acontece quando você não escova os dentes direito”, falava mamãe.

Eu disse que Lola precisava de um dentista. Estava com mais de 50 anos e nunca tratara dos dentes. Eu frequentava a faculdade a uma hora de casa, e tocava no assunto em minhas visitas frequentes. Um ano se passou, depois dois. Os dentes de Lola pareciam um Stonehenge em ruínas. Certa noite, perdi o controle.

Mamãe e eu discutimos até tarde. Ela disse que estava cansada de trabalhar como um burro de carga para sustentar todo mundo, cansada dos filhos que sempre ficavam do lado de Lola, e que pedia a Deus que não tivesse dado à luz um mentiroso arrogante e hipócrita como eu.

Ataquei-a de volta e disse que, se ela parasse um minuto de sentir pena de si mesma, veria que Lola mal conseguia comer porque seus dentes estavam podres. Ela não conseguia pensar em Lola como uma pessoa de verdade e não como escrava?

A escrava

“Escrava”, disse mamãe, sopesando a palavra. “Escrava?”

A noite terminou quando ela declarou que eu nunca entenderia sua relação com Lola. É terrível odiar a própria mãe, mas naquela noite odiei. Seu olhar deixou claro que ela sentia a mesma coisa por mim.

Mamãe piorou com Lola e dizia: “Espero que esteja contente agora que os seus filhos me odeiam.” Quando ajudávamos Lola no trabalho doméstico, mamãe fumegava. “É melhor ir dormir agora, Lola”, dizia com sarcasmo. “Você andou trabalhando demais.”

Lola finalmente nos implorou que parássemos de tentar ajudá-la.

– Por que você fica? – perguntamos.

– Quem vai cozinhar? – respondeu ela, o que entendi como: Quem vai fazer tudo?

Em outra ocasião, ela disse: “Para onde eu iria?” Isso me pareceu mais próximo de uma resposta verdadeira. Ela não tinha contatos nos Estados Unidos e nenhuma facilidade de se virar. Os telefones a confundiam. Pessoas que falavam depressa a deixavam atordoada, e seu inglês ruim fazia o mesmo com os outros. Ela não saberia marcar uma consulta, organizar uma viagem, preencher um formulário ou pedir uma refeição sem ajuda.

Arranjei para Lola um cartão de débito ligado à minha conta bancária e a ensinei a usá-lo. Ela conseguiu uma vez, mas na segunda se atrapalhou e não tentou nunca mais.

Antigos hábitos

Peguei um mapa e tracei a rota até a aldeia de Mayantoc, nosso destino. Não restavam muitos parentes de Lola. Só uma irmã, Gregoria, de 98 anos, continuava na região, e me disseram que a memória dela estava falhando.

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Eu estivera em contato com uma das sobrinhas de Lola. Ela planejara o dia: uma cerimônia discreta, seguida por uma oração, e então a deposição das cinzas em um túmulo do Parque Memorial da Bênção Eterna de Mayantoc. Fazia cinco anos que Lola morrera, mas eu ainda não lhe dera o último adeus. Passei o dia inteiro sentindo o peso terrível de perdê-la, como se ela tivesse morrido no dia anterior.

Doods virou para noroeste e depois fez uma curva fechada à esquerda em Camiling, cidade natal de mamãe e do tenente Tom. Duas pistas viraram uma, depois o cascalho se transformou em terra. O caminho corria ao lado do rio Camiling, grupos de casas de bambu ao lado, morros verdes à frente. O caminho de casa.

“Esta é a sua casa”, falei. “Você não está aqui para nos servir. Relaxe, ok? “. “Ok”, disse ela e voltou à faxina.

Após a grande briga

Depois da briga, evitei o mais que pude visitar minha casa e, com 23 anos, me mudei para Seattle. Quando visitei, vi uma mudança. Enfim, mamãe dera a Lola uma bela dentadura. Cooperou quando meus irmãos e eu decidimos legalizar a situação de Lola como imigrante. Foi um processo longo, mas Lola se tornou cidadã americana em outubro de 1998, quatro meses depois de minha mãe receber o diagnóstico de leucemia. Mamãe viveu um ano mais.

Antes de morrer, ela me deu seus diários. Eu os folheei enquanto ela dormia a poucos metros e vislumbrei partes de sua vida que eu me recusara a ver durante anos. Ela fora estudar Medicina quando poucas mulheres faziam isso. Trabalhara duas décadas numa instituição estadual para pessoas com transtornos de desenvolvimento em Salem, no Oregon. As colegas se tornaram amigas íntimas. Ela tivera uma vida e uma identidade separadas da família e de Lola.

“Orgulhosa, amorosa, ressentida”

Mamãe escreveu com detalhes sobre cada um dos filhos e como se sentia a nosso respeito em determinados dias – orgulhosa, amorosa, ressentida. E dedicou volumes aos maridos, tentando compreendê-los como personagens complexos de sua história. Quando mencionada, Lola era um personagem secundário na história de outra pessoa. “Lola levou meu amado Alex para a escola nova hoje de manhã. Espero que ele faça novos amigos depressa para não se sentir tão triste com outra mudança…”

Na véspera do dia da morte de mamãe, um padre foi à sua casa para a extrema-unção. Lola ficou sentada junto à cama, segurando uma xícara com um canudo, pronta para levá-lo à boca de mamãe. O padre perguntou a mamãe se havia algo que ela quisesse perdoar ou por que quisesse ser perdoada. Ela examinou o quarto com os olhos de pálpebras pesadas. Então, estendeu a mão aberta e a pousou sobre a cabeça de Lola. E não disse palavra.

Nova vida

Lola tinha 75 anos quando veio morar comigo. Eu era casado, com duas filhas pequenas, e vivia numa casa aconchegante em um terreno cheio de árvores. Demos a Lola licença de fazer o que quisesse: dormir até tarde, assistir às novelas, relaxar. Eu devia saber que não seria tão simples.

Eu me esquecera de todas as coisas que Lola fazia e que me irritavam um pouco. Vivia me dizendo que vestisse um suéter para não pegar um resfriado (eu tinha mais de 40 anos). Queixava-se sem parar de papai e Ivan. Aprendi a me desligar. Mais difícil de ignorar era seu instinto fanático de economia. Não jogava nada fora. Lavava e reusava as toalhas de papel várias vezes, até que desintegrarem em suas mãos. A cozinha ficou lotada de sacolas de supermercado, potes de iogurte e vidros de picles.

Ela preparava o café da manhã. Fazia nossas camas e lavava a roupa. Limpava a casa. Eu lhe dizia: “Lola, você não precisa fazer isso.” Tudo bem, respondia ela, mas continuava a fazer.

Eu me irritava ao vê-la comer em pé na cozinha ou ao perceber que ficava tensa e começava a limpar quando eu entrava no cômodo. Certo dia, vários meses depois, a fiz se sentar.

– Não sou meu pai. Você não é escrava aqui – esclareci. Quando percebi que ela se espantou, respirei fundo e beijei sua testa. – Agora esta é sua casa – falei. – Você não está aqui para nos servir. Pode relaxar, ok?

– Ok – respondeu ela. E voltou imediatamente à faxina.

Lola e o autor em 2008. (Imagem: cortesia de Melissa Tizon)

Como seria?

Ela não conhecia outro modo de vida. Percebi que tinha de aceitar meu próprio conselho e relaxar. Se ela queria fazer o jantar, que fizesse. Agradeça e lave a louça.

Certa noite, voltei para casa e a encontrei sentada no sofá, fazendo palavras cruzadas, os pés para cima, a TV ligada. Progresso, pensei.

Isto é, ela plantou um jardim no quintal – rosas, tulipas, orquídeas de todo tipo – e passava tardes inteiras cuidando dele. Fazia caminhadas pelo bairro.

Por volta dos 80 anos, a artrite piorou, e ela começou a andar de bengala. Só cozinhava quando tinha vontade. Fazia refeições opulentas e sorria de prazer quando as devorávamos.

Seu dinheiro

Eu sabia que Lola mandava quase todo o seu dinheiro – minha mulher e eu lhe dávamos duzentos dólares por semana – para seus parentes. Certa tarde, encontrei-a sentada na varanda dos fundos fitando uma fotografia de sua aldeia que alguém lhe mandara.

A disposição de Lola de abrir mão de tudo pelas pessoas que a cercavam lhe conquistou nosso amor e lealdade. 

– Quer ir para casa, Lola?

– Quero – respondeu ela.

Pouco depois de seu 83º aniversário, paguei a passagem para ela voltar. Um mês depois, fui também para trazê-la de volta – se ela quisesse.

O propósito da viagem era ver se o lugar que durante tantos anos lhe inspirara saudades ainda lhe pareceria um lar.

Ela encontrou sua resposta.

“Nada é mais o mesmo”, comentou Lola enquanto passeávamos por Mayantoc.

Sua casa sumira. Os pais e a maioria dos irmãos tinham morrido. Os amigos de infância eram como desconhecidos. Ela ainda gostaria de passar seus últimos anos ali, mas não estava pronta.

“Vamos voltar para casa”, disse ela.

Lola era dedicada 

Lola foi tão dedicada às minhas filhas quanto aos meus irmãos e a mim quando éramos pequenos. Depois da escola, escutava suas histórias e lhes preparava algo para comer. Nunca se cansava delas.

Além disso, era muito fácil fazer Lola feliz. Nós a levávamos para viajar nas férias, mas ela ficava igualmente empolgada ao ir a uma feira de rua. Virava uma criança de olhos arregalados como em um passeio de escola: “Olhem só aquelas abobrinhas!”

E, de fato, aprendeu a ler sozinha. Foi extraordinário. Ela fazia aqueles passatempos em que a gente encontra palavras num bloco de letras. Todo dia, assistia ao noticiário e escutava as palavras que reconhecia. Procurava-as no jornal e descobria seu significado. Passou a ler o jornal também, de ponta a ponta. Ainda assim, eu me perguntei o que ela poderia ter sido se, em vez de trabalhar nos arrozais aos 8 anos, tivesse aprendido a ler e escrever.

Os sentimentos de Lola

Durante os 12 anos em que morou em nossa casa, tentei descobrir a história de sua vida. Certo dia, perguntei:

– Você já se sentiu enamorada por alguém?

Desse modo, ela sorriu e me contou a história da única vez que chegara perto disso. Tinha uns 15 anos, e havia um garoto bonito chamado Pedro, de uma fazenda próxima. Sendo assim, durante vários meses, colheram arroz lado a lado.

– Eu gostava dele – confessou ela.

Silêncio.

– E…?

– Aí ele se mudou – disse ela. Ela costumava dar respostas de uma ou duas palavras a perguntas pessoais, e arrancar a história mais simples era um jogo de vinte perguntas que podia durar dias ou semanas.

Parte do que descobri: ela se sentia muito zangada com mamãe por ter sido tão cruel durante todos aqueles anos, mas mesmo assim tinha saudades dela. Às vezes, quando jovem, Lola se sentia tão sozinha que só conseguia chorar. Mas conviver com os dois maridos de mamãe a fez pensar que ser sozinha não era tão ruim assim. É provável que talvez sua vida fosse melhor se ela tivesse ficado em Mayantoc, se tivesse se casado e formado uma família. Mas o que lhe veio foi outro tipo de família. Mamãe, meus quatro irmãos e eu, agora minhas duas filhas. Todavia, nós oito, disse ela, fizemos sua vida valer a pena.

O infarto de Lola

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Inesperadamente, o infarto de Lola começou quando ela preparava o jantar e eu me encontrava na rua. Assim que voltei, ela já estava tendo o infarto. Algumas horas depois, no hospital, antes que eu entendesse o que acontecia, ela se foi. Lola morreu em 7 de novembro, no mesmo dia que mamãe. A propósito, com 12 anos de diferença.

Apesar de tudo, Lola chegou aos 86 anos. Não tinha nada da ambição egoísta que move a maioria de nós, e sua disposição de abrir mão de tudo pelas pessoas que a cercavam lhe conquistou nosso amor e nossa total lealdade. Decerto ela se tornou um personagem santificado em minha família.

Aliás, levei meses para examinar suas caixas no sótão. A princípio encontrei álbuns de fotos com imagens de minha mãe. Além de prêmios que meus irmãos e eu tínhamos ganhado, eventualmente, desde o início da escola. Assim como uma pilha de reportagens amareladas que escrevi e já havia esquecido fazia muito tempo. Ela não sabia ler na época, mas guardou tudo mesmo assim.

No lar de Lola

Assim que a picape de Doods parou junto a uma casinha de concreto, antes que eu descesse, as pessoas começaram a sair. “Por aqui”, disse uma voz suave, conforme fui levado até a casa. Ao mesmo tempo, logo atrás vinham umas vinte pessoas, idosos em sua maioria. Depois que entramos, todos se sentaram em cadeiras e bancos arrumados ao longo das paredes. Entretanto, fiquei em pé. Sobretudo, as pessoas me olhavam com expectativa.

Por fim, uma mulher de meia-idade com um vestido simples entrou com um sorriso.  Ebia, sobrinha de Lola. Afinal, aquela era sua casa. Antes de mais nada, ela me deu um abraço e perguntou: “Onde está Lola?”

Desse modo, entreguei-lhe minha sacola. Então, ela se sentou num banco de madeira, pegou a caixa, pôs no colo e descansou a testa na tampa. Mas os ombros começaram a se sacudir, e então ela chorou – um uivo profundo, lamentoso, como o de um animal.

Último adeus

Em parte, não entreguei antes as cinzas de Lola porque não tinha certeza de que alguém ali se importava muito com ela. Porque não esperava esse tipo de pesar.

Antes que eu pudesse consolar Ebia, uma mulher veio da cozinha e a abraçou. Mas no momento seguinte, a sala explodiu em som. Aliás, as pessoas mais velhas – uma delas cega, várias desdentadas – choravam todas. Além disso, fiquei tão fascinado que mal notei as lágrimas que corriam em meu rosto. Os soluços foram morrendo, e então houve silêncio outra vez.

Então, Ebia fungou e disse que estava na hora de comer. Assim, todos começaram a ir em fila para a cozinha, de olhos inchados – porém, de repente, mais leves e prontos a contar histórias. Portanto, dei uma olhada na sacola vazia no banco e soube que fora correto levar Lola de volta ao lugar onde nascera.

Por Alex Tizon da Revista The Atlantic

De Lola’s Story, © 2017 Espólio De Alex Tizon, publicado por The Atlantic (junho de 2017), theatlantic.com