“Você vai entrar na Internet hoje?” – a pergunta que, com certeza, já foi feita por quem viveu a Web no início dos anos 2000 já não faz nenhum sentido, e
“Você vai entrar na Internet hoje?” – a pergunta que, com certeza, já foi feita por quem viveu a Web no início dos anos 2000 já não faz nenhum sentido, e não é de agora. Há tempos estamos permanentemente conectados. Pelo computador, pelo celular, pelo relógio, pelos fones de ouvido. As telas estão por toda a parte, bem como as conexões e as redes invisíveis.
Do primeiro ano deste século até março de 2020, vivíamos em dois universos. O mundo que conhecíamos como “mundo real” e o “mundo virtual” coexistiam, se misturavam, mas ainda conservavam algumas barreiras claras que os separavam minimamente. Hoje, tudo mudou.
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Há quatro meses em isolamento social, na tentativa de conter um vírus para o qual ainda não temos vacina, noventa por cento das minhas interações com outros humanos são virtuais. Da reunião de trabalho ao chá de bebê online, agora eu escolho o que as pessoas verão de mim, “pela tela, pela janela”, como diz Adriana. Em tempo integral.
Eu me pego, volta e meia, analisando minhas expressões faciais no vídeo, em vez de analisar a de quem está ouvindo o que eu tenho a dizer. Arrumo o cabelo durante uma conversa – provavelmente bem mais do que eu fazia antes. Percebi que meu sorriso tende ir para um lado só, e acho tão esquisito: eu sempre fiz isso? Ou é algo recente?
O que muda, de fato, agora que podemos nos observar enquanto falamos? Temos um maior controle da nossa imagem, certamente. Mas, se o outro está agindo como eu estou agindo, ele me percebe? Ele me vê? Ou ele também está preocupado e muito intrigado com seu próprio “eu”?
O virtual virou o real e o nosso corpo físico não entendeu muito bem, de primeira. O sono desregulou. O estômago revirou. Os sapatos, no armário, devem conversar entre si, como os brinquedos de Toy Story: “ela nunca mais vai me usar?”. E as calças de moletom devem reclamar, em assembléias, enquanto eu durmo: “nós estamos exaustas!”
Agora, que o virtual virou o real, o meme “deus não dá asa à cobra” caiu por terra. Os filtros do Instagram e do Tik Tok nos mudam, achatam, afinam, aumentam, destacam tudo aquilo que quisermos. Finalmente podemos ter os olhos do nosso anime preferido.
A estante com livros perfeitamente arrumados no meu background é tudo o que você vai ver do meu espaço físico – que é totalmente bagunçado fora desse quadrado. O mundo virtual nos dá tanto controle, que cansa. É exaustivo.
Mas, para a surpresa de muitos, ele não muda quem somos, de fato: “o computador está reiniciando” é o novo “o ônibus atrasou”. O desabafo no Twitter ainda faz contraste com o silêncio na videochamada, no cara a cara. Quem é “de exercícios”, usa aplicativos para manter a forma. Já quem costumava faltar na academia… Bem, pode-se dizer que temos encontrado nossas desculpas para adiar a vida fitness com a ajuda da tecnologia, também.
O virtual denuncia a desigualdade lá fora. Deixa claro quem faz e quem não faz parte desse mundo. Nos dá a chance de ajudar, de fazer algo para mudar a realidade do outro, de incluir, de integrar. E, no final do dia, nos conforta em nossa própria bolha, mesmo quando nos omitimos, simulando uma segurança que a gente já sabe que não existe.
O virtual nos acentua, em diversos aspectos, e nos expõe a quem somos de forma impiedosa. Nos faz assistir, sem nenhuma exclusividade, a cada uma de nossas imperfeições – aquelas que, mesmo de forma inconsciente, tentamos esconder por tantos anos.
O virtual nos dá a última chance de aceitar e acertar quem somos.
Ou nos permite pegar o caminho mais curto, criando um “novo real” para um “novo normal”.